Como é que se elogia um morto? Será que é possível «dignificar a memória» de um homem? Há algo de terrivelmente mórbido na consolação católica mais beata de beijar a imagem ou velar pela alma, não deixando, no entanto, de ser uma consolação muito nossa, muito humana (e, diria mesmo, muito portuguesa, segundo a nossa tradição religiosa). Uma consolação de fé, baseada num mundo ininteligível. E nisto deve-se recorrer sempre a um génio, numa incerteza tão certa, e no entanto tão sólida:
«Palavreado. Como julgar-me para depois de morto se então não estarei vivo? Depois de morto estou morto mesmo, e isso é que eu tenho de pensar, enquanto respiro. Morrendo, não penso em mim. Os outros também não pensam. Que é para nós a luta dos que morreram ignorados? Nada. Nem uma tabuleta. E que é positivamente para eles a mesma luta, agora que são terra? Nada, caramba. Ao menos esses pensariam que a morte os poderia liquidar: mas não às certezas que os habitavam.»
- Vergílio Ferreira, Mudança
[João Carlos Silva]
sexta-feira, janeiro 20, 2006
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