quarta-feira, janeiro 18, 2006
Aurora
Se há realizador onde o Mal tem cara, onde a face mais escura do Homem tem expressão física, é F.W. Murnau. E Aurora (ou Sunrise - A Song Of Two Humans) é um exemplo extremamente «humano» dessa tentativa de mostrar o Mal. Na verdade, um dos elementos subtis que surgem neste filme são os impulsos obscuros que perturbam o espírito do pilar central do filme: o «homem» (George O'Brien). Este «homem» sofre, permanentemente, o assédio moral da corrupção, personificada pela «mulher da cidade» (Margaret Livingston). Por outro lado, a beleza apolínea da «mulher», da «esposa» (Janet Gaynor), traz um certo horizonte positivo ao equilíbrio moral da personagem principal. Esta beleza revela-se, no momento do crime anteriormente perpetrado, uma muralha contra a maldade motivada no «homem».
De facto, ao longo do filme, é excepcional o trabalho de Murnau, mas com enorme mérito também de O'Brien e de Gaynor, em realçar as alterações físicas que o estado de espírito de cada personagem (personagens universais, note-se - sem nomes) efectua. Há, de facto, uma «continuidade absoluta» na acção, como dissera em tempos Vinicius de Moraes. Murnau tenta, pois, reduzir os cortes de cenas quase ao mínimo possível. Nota-se uma quase ausência dos momentos de day after, de quebras de ritmo. O pensamento do «homem» (e do Homem também) é, portanto, algo contínuo, embora com evoluções diferentes. A face de George O'Brien sofre alterações radicais, desde a barba feita e cabelo penteado enquanto em pleno dia na cidade com a esposa, até à grande desolação dos seus olhos quando julga a sua mulher afogada no lago. De um estado de espírito/expressão física para outro vai uma longa mas contínua evolução. E a emotividade desta evolução parece-me apenas ter sentido, e realmente grandiosidade na época e tipos de filmes de 1927. Para mais, é preciso ver este filme na grande tela para realmente nos rendermos ao sublime tratamento que Murnau ali dá ao filme. E aos humanos.
[João Carlos Silva]
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3 comentários:
É estranho como é que na altura o filme foi tão mal recebido pela crítica. Talvez devido a uma abordagem superlativa de um filme que abusava dos efeitos especiais e dos truques técnicos, um pouco como aqueles blockbusters de hoje em dia que abusam do CGI (comparação exagerada, eu sei).
Mas dentro da obra do Murnau, acho que o Aurora não tem um carácter tão intemporal quanto os anteriores principalmente.
Caro dermot,
o «Aurora» parece-me, sobretudo, um filme «universal» na sua moral, numa espécie de evocação de um castigo (a morte da mulher, que depois não se realiza), na medida em que em Dostoiévski também acontece.
Em termos de «filme» em si, «Aurora» tem de facto bastantes recursos técnicos para a sua época. Talvez porque assim se faz melhor a transição de cenas sem interromper a linha temporal pensada pelo autor. Mas isto já sou eu a idealizar.
João Carlos Silva
Best regards from NY! » »
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