Não é a primeira vez que afirmo que a principal característica que encontro na obra de Fernando Namora tem pouco que ver com assuntos literários. Com efeito, da mesma maneira que não se pode analisar um escritor a partir daquilo que faz fora da literatura, também não se pode dizer que a bondade seja algo que se englobe nas veredas literárias. Isto porque a bondade não é nem nunca será um recurso de estilo. Mesmo assim, não hesito em escrever que o principal traço criativo de Namora é a bondade. Não hesito, em primeiro lugar, porque, como é do conhecimento de muitos, Namora tinha, acima de tudo, um bom coração. Um coração enorme. Depois, sabendo-se que o autor de Retalhos da Vida de um Médico primava essencialmente pelas criações neo-realistas, não será difícil comprovar-se que, realmente, não existe descrição da pobreza portuguesa que não inclua uma espécie de comoção por parte de quem a faz. Simplificando as coisas: Fernando Namora foi, ao longo da sua vida, um escritor que sempre se preocupou com a desgraça alheia. Isso talvez se deva ao facto de também ter exercido a profissão de médico.
Costumo dizer a amigos mais próximos que Namora foi um escritor sem maldade. Embora isso seja, normalmente, afirmado em conversas de café, não deixo de pensar que talvez a coisa tenha o seu sentido. Vejamos: quando me refiro à ausência de maldade na obra de Namora, refiro-me, por exemplo, à preocupação extrema que por vezes trespassa do autor para as suas personagens. Assim, mesmo a mais nauseabunda das personagens é sempre dotada de um cariz humanista ou, se se preferir, de um cariz dotado daquilo a que muitas vezes se dá o nome de piedade. Dir-se-ia que Namora, em vez de expor as suas personagens à humilhação, expõe-as a um sofrimento piedoso. As suas personagens sofrem de fome ou de doença mas nunca deixam de ser pessoas. É essa a memória que me fica dos livros de um médico que, antes de ser escritor, já era homem.
[Paulo Ferreira]
sexta-feira, janeiro 27, 2006
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