sábado, janeiro 14, 2006

A inocência das alcunhas portuguesas

As alcunhas pegam-se ao quotidiano como doenças à pele. Surgem da forma mais volátil mas, sem aviso, ganham identidade própria. E Portugal parece-me, assim, um local apropriado para retirar os melhores espécimes destes casos patológicos. Atente-se numa inocente conversa entre dois portugueses: «olha lá, quem vimos ontem aqui mesmo?» «Acho que foi o Cego» «Mas o Cego andava sozinho?» «Não, estava com o Maluco» «Não era o Maluco, era o Cigano». Ora, para os mais desatentos cronologicamente, esta poderia ser uma civlizadíssima e formal conversa de trabalho entre duas altas patentes do III Reich. Mas não, são dois portugueses quebrando gelo nas horas livres, enquanto se refastelam na esplanada de pernas esticadas para o passeio, em tom de desafio às beldades que passam apressadas e altivas.

No entanto, há que, urgentemente, analisar a conversa destes dois amigos. Repare-se que o português não é um homem especialmente racista - nem é uma personagem tipicamente xenófoba. Em primeiro lugar, antes de mais, colonizámos os índios do Brasil de forma violenta mas honestamente isenta. Ou seja, se massacrávamos os nativos ou esmagávamos a resistência era para o bem de um povo pré-civilizado. Pela cabeça do português, já então citadino mas de complexo rural, nunca passou a ideia de superioridade racial, mas sim uma sincera vontade de expandir território. Em segundo lugar, tivemos um ditador sui generis. Ora, não só Salazar achava que África era um sítio especialmente agradável para os portugueses (ao contrário da petulância republicana), como Marcello tinha em grande conta as tradições e valores dos nativos das colónias. Ou seja, nem Salazar, homem do campo, sabia ser racista. Em terceiro lugar, Portugal gosta de sair de Portugal. Ao contrário do que muitas vezes dizemos, a verdade é que não só gostamos de receber estrangeiros, como o nosso mais íntimo desejo é deixar o país entregue (e bem entregue) aos brasileiros, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos e por aí fora, enquanto nós nos mudamos para os países deles.

Dito isto, só se pode depreender que quando o português chama «Cigano» a alguém, não é, decerto, com malícia. Provavelmente, no contexto do local de trabalho, a palavra «Cigano» surgirá para classificar um colega delator ou um outro que tenha métodos de trabalho mais obscuros, com grande probabilidade de esse «Cigano» ser, portanto, um da mais clara e lusitana tez possível - só assim se perceberia a genética do bandido.
Já em relação ao «Maluco», duvida-se que seja uma opinião médica devidamente fundada em exames psicológicos. O mais provável é que o «Maluco» seja o rapaz mais trabalhador da vizinhança do escritório. Que é como quem diz: «Aqui ninguém trabalha e vou eu pôr-me a trabalhar para eles, não? Mas julgas que eu sou como o Maluco? Está bem sim, trabalhar é bom para o Preto» (note-se aqui que os que trabalham perdem a identidade para serem uma alcunha). Sendo assim, o «Maluco» será o mais são, que ganhará mais no fim do mês.
Já o «Cego» é alguém mais complexo. Quando o português chama a alguém «Cego» é preciso uma grande afeição, ou uma grande compaixão. Ainda assim, muitas serão as hipóteses: o que não vê; o que não vê bem; o que vê não lá muito bem; o que perdeu uma boa oportunidade de ser alguém na vida; o que não gosta da mulher que tem; o fiscal enganado; o cobrador mais velho do estádio; o árbitro sem jeito; o míope; o adepto de um mau clube de futebol; um sindicalista honesto; etc. Muitas serão as hipóteses de ser «Cego». Por todas elas, tem o português uma profunda compaixão.

Portanto, não há que ter preocupações ao deparar com alcunhas ofensivas. Pelo que vejo, o mais provável é que seja o português a praticar um vasto e natural conhecimento da riqueza dos vocábulos portugueses. Ou isso ou inveja do vizinho.

[João Carlos Silva]