sexta-feira, agosto 08, 2008

«O Um Dividiu-se em Dois»

«Nas ruínas do imperialismo, os povos vitoriosos criariam rapidamente uma civilização mil vezes superior ao sistema capitalista e um futuro verdadeiramente belo para si próprios». Este vaticínio, fruto de uma «visão apocalíptica e messiânica da História», na qual o confronto nuclear tem um papel catártico na confrontação entre o proletariado e a burguesia, ou seja, entre os países comunistas ou socialistas e os países capitalistas, surge em Viva o Leninismo!, documento público produzido pelo Partido Comunista Chinês que revela as primeiras grandes divergências com o Partido Comunista da União Soviética.

O ardor destrutivo, defensor de uma guerra nuclear purificadora do domínio capitalista sobre o proletariado, que é reclamado pelos comunistas chineses é um dos primeiros grandes temas de «O Um Dividiu-se em Dois», trabalho recente de José Pacheco Pereira na sua luta «arqueológica» pelo desbravar dos arquivos da extrema-esquerda e do PCP, e consequente interpretação. O «subtítulo» do livro é explicativo do conteúdo: Origens e enquadramento internacional dos movimentos pró-chineses e albaneses nos países ocidentais e em Portugal (1960-65). Confesso que sou um admirador do trabalho e do tema, e por isso não posso deixar de aplaudir a seriedade (seriedade crítica, refira-se) com que Pacheco Pereira aborda a história dos movimentos revolucionários em Portugal.

No livro, é bastante sublinhada a crítica chinesa à linha política adoptada pela União Soviética perto de 1960. A viragem para a dètente, a «coexistência pacífica», é tomada pelo PCC como uma espécie de «revisionismo moderno» que tenta anular toda a doutrina marxista-leninista. A análise desta cisão gradual entre China e URSS, «dividindo em dois» o movimento comunista internacional, ou bipolarizando-o, é talvez o melhor capítulo de «O Um Dividiu-se em Dois». No Viva o Leninismo! afirmava-se com ironia: «Eles [PCUS] defendem que a coexistência pacífica entre países com regimes sociais diferentes significa que o capitalismo pode pacificamente evoluir para o socialismo, que o proletariado nos países governados pela burgesia pode renunciar à luta de classes e entrar em "coexistência pacífica" com a burguesia e os imperialistas». Não se faz «luta de classes» sem «luta», é a tese chinesa.

Outro aspecto importante desta cisão pública é a «projecção» das críticas para partidos nacionais secundários. Ou seja, os chineses, ao criticarem o «revisionismo moderno» do PCUS, personalizavam as maiores críticas nos jugoslavos e, de certa forma, na crítica pessoal que Tito fazia a Stalin. Já os russos apontavam baterias para os «cisionistas europeus» do Partido Trabalhista da Albânia (PTA) de Enver Hoxha, os supostos traidores da unidade do movimento comunista internacional ao criticarem Krutchev. Desta forma, não criavam um conflito directo público que pudesse destabilizar os dois maiores pólos do comunismo internacional.

Mas, diz JPP no livro: «Face ao conflito sino-soviético, o ambiente político do início dos anos sessenta era favorável à radicalização. Em muitos países europeus conhecia-se um recrudescimento dos conflitos, em França com a guerra da Argélia, e em Portugal com o início da guerra colonial. Na América Latina tinha havido a vitória castrista, em África o ascenso dos movimentos de libertação e a descolonização, seguidos da crise dos mísseis, da guerra do Vietname, do conflito fronteiriço entre a China e a Índia. Tudo isto criava um pano de fundo favorável à contestação das doutrinas krutchevianas da coexistência pacífica pelos sectores mais radicais dos partidos comunistas». A «revolução» internacionalizava-se cada vez mais, e a busca de novos apoios tornava-se premente. Assim se vão multiplicar as adesões às teses «dogmáticas» (segundo os soviéticos) do PCC por parte de várias figuras e de novos movimentos: os M-L, marxistas-leninistas que renovavam a fidelidade à bíblia dos pioneiros alemães do movimento comunista.

Uma nota ainda para o capítulo dedicado à ruptura no seio do PCP. Álvaro Cunhal passara a ter de lidar, a partir de certa altura, com noos desvios: para além do «desvio de direita» de Fogaça, agora tinha um núcleo pró-chinês aparentemente (e realmente) a formar-se. É com este núcleo, claramente encabeçado por Francisco Martins Rodrigues, que não se revia nas escolhas de alianças de Cunhal (a ver no livro também as interessantes referências ao «equilibrismo estratégico» que o secretário-geral do PCP fez com União Soviética e China),que se vai formar a Frente de Acção Popular / Comité Marxista-Leninista Português (FAP/CMLP), o primeiro grupo forte a que se viria a chamar, simplesmente, «maoísta».

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