domingo, fevereiro 19, 2006

Dar um pouco de razão ao mito

Desde pequeno que me habituei a ouvir as míticas histórias dos três pastorinhos, muito embora nunca me tenha comovido de forma sincera com as lendárias aparições de Nossa Senhora de Fátima. Independentemente das minhas convicções religiosas, nunca tive disposição para levar a sério o fundamentalismo religioso aldeão ou paroquial, que, de tempos a tempos, se vai manifestando por este país fora. Assim sendo, para mim, as aparições de Nossa Senhora aos três pastorinhos são comparáveis às lágrimas das santas que certos indivíduos colocam à entrada de suas casas. Ou seja, são manifestações típicas de um país pouco desenvolvido como o nosso. Não querendo parecer exagerado ou possuidor de ideologias que, manifestamente, não possuo, diria que o Iluminista Voltaire não deixa de ter uma certa razão quando afirma que os mitos são invenções sem qualquer sentido. É certo, no entanto, que um outro autor, Giambattista Vico dá uma outra importância aos mitos, nomeadamente, uma importância fulcral no que se refere à fundação das sociedades humanas.

Se os mitos e as supostas «aparições» de santos têm uma forte carga emocional no seio de uma população que é maioritariamente ignorante, não se pode deixar de pensar que a racionalidade de um Voltaire, no caso particular da aparição da Nossa Senhora de Fátima, não faz grande sentido. Melhor: num país extremamente atrasado no que se refere à cultura e à educação, é difícil que um pensador, cuja principal premissa é o racionalismo, consiga impor um pouco de lucidez àquilo a que se costuma apelidar de unanimidade. Até porque a clareza de pensamento dos racionalistas franceses do século XVIII descambou numa autêntica tragédia de princípios e de valores. Mesmo assim, não se pode deixar de tentar perceber o fenómeno que se gerou em torno dos três pastorinhos em geral e da irmã Lúcia em particular.

Assim, não desvalorizando o papel que a religião e a fé têm neste país, diria que o facto de dois canais generalistas e um canal do Estado terem transmitido a trasladação do corpo da irmã Lúcia para Fátima só pode ser sinal de um atraso civilizacional em relação a outros países. Por exemplo, é costume dizer-se por aqui que os americanos são demasiado apegados à religião, que todos os valores americanos derivam da expressão in God we trust. No entanto, quando se trata de demonstrar quem é que deixa de viver para assistir à transmissão em directo da trasladação de um corpo, recorremos a nós mesmos, isto é, a Portugal. Com efeito, Portugal, o país onde todas as liberdades parecem conquistadas, é, ao mesmo tempo, um país apegado a algumas tradições do Estado Novo. Fátima, ao prender as mentes paroquianas nacionais numa espécie de cativeiro miraculoso, é exemplo comprovativo do facto de os portugueses, em trinta anos, pouco terem feito para conquistar liberdades que deveriam ter sido conquistadas. É quase inadmissível que um canal do Estado passe uma tarde a transmitir a trasladação de um corpo, ao que parece, santo. Portanto, não querendo parecer um daqueles pensadores franceses que queriam fazer História a partir do zero, salientaria que a religião, apesar de ser, necessariamente, conservada enquanto factor de coesão social, deveria ser, de igual modo,vista como algo que não deveria mobilizar as nossas vidas de cidadãos curiosos e sedentos de conhecimento. A menos que queiramos voltar aos desejosos tempos da Idade Média, em que se acreditava em mortos-vivos e em outras coisas não menos surreais.

[Paulo Ferreira]

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