quinta-feira, abril 30, 2009

O Fim da Liberdade


Por ocasião da comemoração dos trinta e cinco anos do 25 de Abril, e por entre os cânticos simbólicos mas que já são mais rotina que outra coisa, é bom alertar para uma evidência: em Portugal dá-se muito pouco valor à liberdade.

Se é inegável que o 25 de Abril quebrou várias prisões (literal e figurativamente), não será menos óbvio que o tempo apagou a memória do que é viver sem liberdade. Não falo de poder ou não votar para cargos públicos – que é parte exclusiva do conceito de «democracia» – mas de poder viver a vida, agir, interagir com a sociedade de forma completamente livre do Estado. Não me interessa discutir a «Revolução dos Cravos», a sua complexidade ou o seu sentido de forma fechada. O que interessa aqui é lembrar o que se conseguiu (pelo menos, parcialmente) recuperar em 1974 e que agora progressivamente se está a perder: a liberdade. E os últimos dois ou três anos têm sido terríveis nesse processo de perda de liberdades.

Um dos primeiros grandes passos para o precipício (isto excluindo muitas outras medidas que não têm conta) foi dado com o projecto-lei da maioria socialista que visa meter uns chips electrónicos nos carros para «optimizar» a função da matrícula, aparentemente para funções de contagem apenas. No entanto, esse «Sistema de Identificação Electrónica de Veículos», ou SIEV, não passa de mais um degrau na lenta reconstrução de uma sociedade inteiramente debaixo da mão do Estado (é de realçar que já quase 3 mil pessoas assinaram uma petição – www.ipetitions.com/petition/siev – que tem o objectivo de abortar a aprovação da lei) . Se é verdade que os portugueses sempre estiveram, historicamente, asfixiados pela presença do Estado central, também é verdade que antes os políticos não mentiam tão bem.

Curiosamente, esta medida, aparentemente «em defesa da segurança», nem sequer tem essa função, como revelara o Secretário de Estado Paulo Campos: o SIEV servirá para um «conjunto» de utilizações, que incluirão portagens, seguros (com a consequente necessidade de saber sempre onde a viatura está e quanto anda), medidas contra a poluição (fica sempre bem comover a veia ecologista) e, claro, entre tantas outras pretensas utilidades, a remota possibilidade da maior segurança de encontrar o carro em caso de roubo (uma miragem, já que não oferece quaisquer garantia de segurança). Com isto tudo, vai-se a privacidade e a liberdade de cada um não ser seguido pelo Estado onde quer que leve o seu carro.

Mas não se ficou pelos «chips». Este governo de maioria achou por bem revolucionar o Direito Penal português e até as bases em que assenta o nosso Estado de Direito (uma vez mais, é irónico que isto se passe pouco antes dos festejos do chamado Dia da Liberdade), ao preparar o levantamento do sigilo bancário e estar à beira de avançar com propostas de legislação quanto ao dito «enriquecimento ilícito».

Ou seja, já que «quem não deve não teme», pode-se muito bem inverter o ónus da prova e pôr tudo a nu. Cada cidadão passa a ter as suas contas bancárias ao «ar livre» (para o diabo com os mandatos e as intimações) e qualquer simples funcionário pode vir espreitar quanto ganha cada português, que quantia guarda este no banco e tudo o mais que lhe der na real gana. Qualquer cidadão, até prova em contrário, é um suspeito de meter a mão ao bolso alheio e por isso deve arcar com o fardo de perder a privacidade. Em nome da justiça. Por meia dúzia de maçãs podres – nas suas devidas proporções –, abate-se a árvore inteira.

É assim que surge a tão badalada «Lei do Enriquecimento Ilícito». Esta, um pouco como a sua prima legislativa do levantamento do sigilo bancário, parece estar na moda, num jeito justiceiro bem português, e por isso já se tornou confuso saber a sua proveniência: se veio da maioria socialista no governo, se veio da extrema-esquerda ou até da direita na Assembleia. O que interessa é que se retira ao cidadão um direito básico da democracia: a presunção de inocência. Como diz muito bem o juiz Rui Rangel no Expresso de (atentem na data) 25 de Abril de 2009, «ter direito à presunção de inocência, valor de consagração universal nas democracias modernas, é não ter o ónus de provar que está inocente. Inverter o ónus da prova, em direito penal, dando de mão beijada ao acusador a benesse de acusar e mais nada fazer, é o mesmo que Judas fez com Cristo, é atraiçoar princípios e expectativas legítimas de cidadania. Quer-se viver em democracia com atitudes típicas de uma ditadura».

E depois há o facto curioso de se querer passar a função «penalizadora» para as autoridades fiscais, sem intermédio da Justiça. Isto é, o fisco decide que há um X «ilícito», logo automaticamente converte 60% desse valor em receita fiscal. Ora, se é ilícito deve ser investigado pelos meios competentes, já que a ilegalidade desses lucros, a ser provada, estará na totalidade do valor, e não numa parcela. Assim soa-me mais que o Estado quer ser um parceiro no crime, aproveitando para arrecadar um belo aumento na receita fiscal (sem dúvida, essencial para sanar a tragédia orçamental que aí vem). Tiro o meu chapéu ao deputado comunista António Filipe, que apontou precisamente esse facto de o Estado se estar a pôr na posição de «parte interessada no enriquecimento ilícito».

E assim vamos nós em Portugal, numa série de leis e ideias que, a serem levadas todas a sério, punham-nos novamente a um passo de recuperar a PIDE. Ideia que, certamente, não desagradará a Manuel Simas Santos, uma luminária do Supremo Tribunal de Justiça que acordou um dia e decidiu criar uma Base de Dados de Perfis de ADN, crente na relação proporcional entre nível tecnológico de um país e a sua segurança. Na sua ideia, já não passa a ser preciso sequer cometer um crime para constar dessa Base de Dados, o que atira para o comum cidadão essa função tão cívica de se ir entregar à esquadra local, tal qual vulgar criminoso, para dar sangue. É que entregar as suas liberdades de mão beijada será, certamente, para o Dr. Simas Santos, um dever público, já que no futuro esta lei, segundo ele, «aponta para que, gradualmente, ela venha a conter os perfis de ADN de toda a população». Manuel Simas Santos, o autor destas belas palavras retiradas de um filme de terror, tem cabelos brancos, o que só vem comprovar a minha teoria de que a idade não cura os idiotas.

Como disse no início, os portugueses dão pouco valor à liberdade, e ainda menos à liberdade dos seus pares. Três em cada quatro pessoas com quem falo resignam-se ao velho ditado popular de que «quem não deve não teme», o que não será por acaso. Um velho amigo acertou em cheio ao notar que este «parece ser um ditado muito popular», o que explicará a falta de liberdade portuguesa. Nem mais. O português facilmente entrega tudo ao Estado, irracionalmente confiante em que qualquer poder que venha de cima certamente corrigirá todos os erros da sua sociedade e, muitas vezes, da sua vida profissional e pessoal. Quando uma empresa falha ou, até bem pelo contrário, quer fazer dinheiro com, por exemplo, monumentos (caso do Turismo), a solução habitual é transferir toda a tutela desses elementos para o Estado, O que é perfeitamente irracional e ilógico, já que foi o Estado que, mais do que qualquer privado, desiludiu e explorou os homens ao longo do tempo.

A crença no «Poder lá de cima» poderá ser um reflexo das nossas raízes cristãs, na fé de que a absolvição e a justiça sempre virão de cima. Mas os portugueses, tal como muitas outras pessoas noutros países, esquecem-se de que não é Deus que governa o seu país. Os governos, em Portugal, são dirigidos por homens. E os homens, como se sabe, ao longo de vários milénios, nunca conseguiram deixar de falhar, de se deixar corromper, de abusar do poder e de, inevitavelmente, destruir as coisas boas que se puderam, por vezes a muito custo, construir.

(Publicado no Setúbal na Rede, 30/04/2009)

quarta-feira, abril 29, 2009

Bibliofilia

Foi adicionado, na coluna do lado, o blogue Biblioteca Ephemera, de Pacheco Pereira. Mais um sítio onde se nota o amor aos livros e, sobretudo, ao «papel» dos livros. O cheiro da capa, do velho, até da humidade, que quase que complementam a intemporalidade dos conteúdos. Uma prova disso é esta bela história sobre a aquisição de alguns milhares de livros avulsos, que fará sorrir qualquer um que saiba o que é isto de «andar aos livros». Fica um excerto:

(...) Devo uma biblioteca completa a um funeral e à lembrança de um dos homens que veio velar um morto e que negoceia em papel e sucata. Bateu-me à porta e disse-me que tinha comprado umas toneladas de papel, sob o formato de livros, e que talvez eu quisesse alguns. Ele preparava-se, conforme as regras da sua profissão, para rasgar as capas dos livros para separar o tipo de papel e maximizar a sua compra. Prometi que ia ver e fui logo a seguir.

Era um dia desta primavera sem chuva e o local onde estava armazenado o papel era no meio de um campo, no mesmo planalto que continua o do cemitério. Estava tudo verde à volta, no esplendor que têm os campos nestes dias, e no caminho de terra por onde entrei amontoavam-se carcaças de carros, montes de sacos de adubo, sucata diversa, restos de máquinas, pilhas de metal, papel. Ao fundo um grupo de homens trabalhava carregando uma camioneta. “Onde é que está o papel?” “Aqui nestes dois contentores e ainda falta quase o dobro.”

E lá estavam os contentores completamente cheios de livros, à primeira vista apenas maltratados pela forma como foram carregados, mas escapados à perigosa destruição pela água por esta longa seca. Tirei um que estava em cima, uma das primeiras edições brasileiras de Jorge Amado, depois outro, uma novela portuguesa dos anos quarenta, e outro, um manual de instrução para os oficiais de cavalaria do século XIX. Comprei tudo de imediato, com a condição que ele não deitava fora um único papel, quer dos que estavam, quer dos que faltavam e que “jornais escuros” também faziam parte do acordo. Insisti, com uma velha suspeita habitual, que tudo era tudo, fosse o mais pequeno e amarfanhado resto de posologia de um medicamento. Se havia lixo, eu veria o que era lixo. (...)

Evolução

Recebo um e-mail (apesar de tudo, uma «circular») com um vídeo de vigilância de um bar do Porto, em que um homem é espancado até à morte por um bando de criminosos que não terão mais de dezoito anos. No fim do vídeo, e durante o resto do dia, só um pensamento me ocupa a cabeça:

terça-feira, abril 28, 2009

José Gil hoje - o medo de ser claro

O que me chateia em Portugal Hoje - O Medo de Existir, o popular livro de José Gil, é a forma como o autor conceptualiza banalidades, complicando-as e, por vezes, enevoando-as. O que aos menos distraídos parecerá óbvio - a falta de civismo e de memória dos portugueses, o seu conformismo, o seu descomprometimento - surge nas entrelinhas de um livro de conceitos que peca por alguma arrogância «afrancesada» que hiperboliza a realidade e falha em perceber o essencial: o «ser português» não é novo.

Por outro lado, gosto da tentativa de um filósofo enveredar pela reflexão sobre a actualidade, coisa que faz muita falta. Hans Magnus Enzensberger (embora seja arriscado rotulá-lo como filósofo ou ensaísta, para alékm da obra poética) fá-lo de forma crua e directa, sobretudo quando «pensa» o terror e o conflito que pairam nas sombras da Europa dos últimos trinta/trinta e cinco anos. José Gil fá-lo mal, mas merece a atenção devida pela sua intenção, muito louvável, de ameaçar sair do fechado círculo académico dos filósofos. «Ameaçar sair» porque, de facto, acaba por não sair, visivelmente demasiado preso à fenomenologia. Por vezes, torna-se gritante que Portugal é um planeta distante da vista de José Gil. Tal como José Gil (e por isso sempre estranhei o «best-sellerismo» do livro) será, sem dúvida, um planeta estranho à maioria do leitor médio em Portugal.

David Simon, o Dickens da América actual

(...) What Edward Gibbon was to the decline and fall of the Roman Empire, or Charles Dickens to the smoky mean streets of Victorian London, David Simon is to America today.

Bill Moyers, aqui, em entrevista com David Simon, criador de The Wire.

A percepção e a dualidade



Spider (2002), de David Cronenberg

sábado, abril 25, 2009

Tradução



O único canal que se consegue ver durante este dia de comemorações e homenagens vazias (nem sentidas, nem com sentido) é a RTP 2. Aliás, a melhor surpresa que tive foi apanhar, numa noite de insónia, a reposição de um programa sobre o Luiz Pacheco. A melhor lembrança é a da história em que o Pacheco traduz o Dictionnaire philosophique de Voltaire - tradução na qual põe, em vermelho, as palavras das quais não se lembra o significado com outras palavras mais peculiares. Assim, com a pressa, envia o manuscrito traduzido para o editor. Infelizmente, pelo meio, lá foram as palavras vermelhas - «merda», «caralho» - a avisar o que faltava traduzir.

sexta-feira, abril 24, 2009

«Conquistas de Abril»

Em Setúbal, festejam-se os trinta e cinco anos do 25 de Abril de 1974. Ou seja, festejam-se os trinta e cinco anos da dita «Revolução dos Cravos». Ou seja, festejam-se trinta e cinco anos de se ter derrubado, de forma bastante pacífica, um regime autoritário que pregou o país (e as mentalidades) ao chão. Que devastou a economia e as economias, sobretudo as pequenas. Que desfez o que restava em Portugal de uma propensão para querer a liberdade. Que minou o desenvolvimento faseado das estruturas básicas administrativas e das estruturas sociais. Em 1974 não passámos para melhor mas, por princípio, terminámos um período que será, acredito eu, relativamente pobre na história recente de Portugal.

Assim, merece ser «festejado». E como é que «festeja» tal transição? O programa é claro: entre os encómios a cantores e compositores de intervenção (os do costume, com Adriano Correia de Oliveira à cabeça e a inevitável mas equívoca partidarização de José Afonso), surge, é claro, a verdadeira liberdade, ou seja, uma agenda repleta actividades infantis e de fitness (é isso mesmo, fitness), de bandas filarmónicas, de vários passeios de bicicleta, de torneios de sueca, futebol, «pintura mural» (uma metáfora para vandalismo), malha, artes marciais, ténis de mesa, tiro ao alvo, bisca dos nove, damas, dominó, chinquilho, setas e, claro está, almoçaradas, lancharadas e bailaricos. Enfim, toda uma variedade de coisas que, muito certamente, não se podiam fazer durante o Estado Novo e que são as «conquistas de Abril». Afinal, o futebol é uma forma de emancipação política. Ou não?

Resta saber se, no fim, a rapaziada mais nova vai para casa a saber o que implicou o 25 de Abril simbolicamente (por bom ou mau que achem esse dia simbólico) ou se, muito justificadamente, chega a casa farta de confusão sem razão com vontade de se entrar num período autoritário que acabe com tanto festejo, festejos esses que substituem a sua razão de ser por serem entretidos pela razão invisível de terem sido «conquistas de Abril».

P.S.- enquanto escrevia este post, saiu-me «25 de Baril» em vez de «25 de Abril». O que parecerá, ao leitor distraído, um mero erro ou uma mera aselhice da minha parte, é visto por Freud como sendo um acto falhado, um lapso que tem muito a ver com o sujeito e menos com a linguagem. Sendo que «Baril», neste caso, seria o meu insulto pessoal às «vitórias de Abril». Se estivéssemos novamente no PREC, possivelmente este seria o «móbil» necessário para ser suficientemente fascista para não poder andar livre nas ruas.

Quarta



Se não a melhor, então uma das duas melhores temporadas daquela que, provavelmente, é a melhor série que já vi.

sábado, abril 18, 2009

My thoughts exactly

O que é que levará o PSD a colocar Paulo Rangel como cabeça de lista do partido às eleições europeias? Não que o homem não tenha valor, mas precisamente por o ter: o que é que leva um partido a enviar o seu melhor parlamentar para fora do parlamento (...)? O que é que leva um partido a prescindir de ter na Assembleia da República uma pessoa que, no tempo em que lá esteve, mostrou ser o único capaz de dizer algo que fizesse um mínimo de sentido?

Bruno Alves, no Desesperada Esperança, 15/04/09

Bilhete de identidade



Uma nova característica (não exactamente nova, mas que piora a olhos vistos) que certamente figurará das informações do meu futuro Cartão de Cidadão: umas dores de costas horríveis. Dizem que é da chuva.

«Na companhia de muitos outros»

Numa edição de 1977 d' O Anjo Ancorado, de José Cardoso Pires, que adquiri numa pequena venda de livros em segunda mão, é possível encontrar um ou outro sublinhado. Embora sejam a caneta (pecado último), esses sublinhados revelam algo de alguém que, em Novembro de 1978 (marcado também a caneta na página de rosto), se sentiu movida por uma frase na página 42, prontamente sublinhada: «Vivemos numa época em que cada qual fala para si mesmo na companhia de muitos outros». Quando se começa a ler, o objectivo único é devorar o livro pelo livro. Com o tempo, aprende-se a ver tudo o resto. A ver, de facto, o que rodeia o conteúdo de um livro. Neste caso, é a vida interior de alguém que, em mil novecentos e setenta e oito, se reviu nesta passagem. Para além da vida de Cardoso Pires e do próprio Anjo Ancorado, este livro traz a vida de outra pessoa.

O estado das coisas

quinta-feira, abril 16, 2009

A vida dos meus dias

Ler as memórias de «combate» de sindicalistas na flor da idade: 97 anos.

quarta-feira, abril 15, 2009

A cultura dos políticos

Poderia meter aqui mil e uma páginas d'O País das Maravilhas (estou a exagerar, mas ainda a antologia ainda tem quase 550 páginas) que convenceriam qualquer um do brilhantismo das crónicas de Vasco Pulido Valente. Aliás, a genialidade está no facto de retratar tão bem o Portugal que tínhamos - em 1975-79 - que acaba por retratar o Portugal que temos - em 2009. Muitos artigos acabam mesmo por ser ensaios informais de História que tanto fazem uma ponte com o passado como adivinham o que virá a acontecer nos mais de trinta anos seguintes. Do século XIX ao século XXI, Portugal continua cheio de bandidos, ignorantes e profetas da aurora do dia seguinte, os «brawlers, bawlers & bastards» de Tom Waits.

A título de exemplo, Vasco Pulido Valente escrevia isto no Expresso em 28-10-1978, em crónica intitulada «A Cultura dos Políticos»:

Numa entrevista recente, Manuel Alegre decidiu chamar-me «integralista lusitano», miguelista e adversário da Revolução Francesa. Tudo isto está certo. Manuel Alegre é talvez licenciado em Direito e publica uns versos declarativos e oratórios, como já não se faziam há cem anos, e que são, ao nível da rima, o seu autêntico retrato político. Com estas qualificações, não se lhe deve pedir mais, nem a mim me pagaram para lhe explicar o que foi o «integralismo lusitano», o miguelismo e a Revolução Francesa.

Mas o caso de Manuel Alegre, em si próprio destituído de qualquer importância, é infelizmente típico. A cultura da classe que nos governa não difere em geral da dele. Para começar, não passa quase sempre de uma cultura jurídica e literária, ou seja, de uma amálgama do pior positivismo jurídico que se ensinou (e se continua a ensinar) nas nossas universidades, com algumas ideias imprecisas sobre a sociedade e o mundo, adquiridas por tradição oral e na leitura de «escritores» «progressistas» ou «bem pensantes». Um caldo deprimente, servido, à esquerda, com Marx, Lenine, Gramsci e os epígonos franceses da moda; e, à direita, com prosa pacificadora, género Aron e Galbraith.

Os políticos de extracção jurídica constituem sem dúvida a maioria dos profissionais do ramo, como no século XIX. A sua formação filosófica é menos do que sumária e os seus contactos com as ciências sociais tímidos ou nulos. Ao lado deles, porém, existe hoje a nova espécie dos economistas, que se consideram a si próprios o sal da terra e os apóstolos do realismo e do bom senso. Só que, revolucionários, reformistas ou conservadores, todos tendem a praticar a sua arte como se não vivessem em Portugal, ou em qualquer outro lugar de matéria e trevas, e todos amargamente se queixam de que o Governo e o País sem razão se recusam a seguir as suas salvíficas receitas. Para eles, supor que a economia tem alguma coisa a ver com a sociedade é uma aberração e um pecado.

De resto, advogados ou economistas, economistas ou engenheiros, os príncipes que nos pasotreiam partilham certas características intelectuais significativas. A primeira é com certeza a sua radical ignorância da nossa História: encontrei muitos políticos desde 25 de Abril, não encontrei nenhum que não ficasse reprovado num exame elementar de História de Portugal. A segunda é a sua absoluta falta de familiaridade com os problemas teóricos e mesmo com a linguagem técnica rudimentar da sociologia contemporânea: pequena lacuna que frequentemente os impede de perceber as questões mais simples e sobretudo de avaliar o que os especialistas deste ou daquele assunto lhes resolvem dizer. A terceira é o seu devastador desconhecimento do País que se propõem gerir: como várias vezes pude constatar, nem imaginar conseguem o que de facto precisam saber.

Objectar-se-á que aos políticos basta cultura política (o que, em 1978 e com uma administração como a portuguesa, obviamente não basta). Mas até cultura política, em sentido próprio, não a têm. Fora Marx e Lenine, não abriram os clássicos. Dos grandes sistemas políticos acumularam penosamente meia dúzia de noções triviais, destinadas ao jornal e ao comício. No dia-a-dia, sustentam-se do estereotipo e do maniqueísmo.

E, coitados, como seriam diferentes com a universidade que os educou e que por aí, intacta, persiste? São competentes no que podem, isto é, na manobra, na proclamação, na promessa estrondosa e no adjectivo que rufa. Não são competentes no entendimento do País e na sua acção sobre ele. Alimentam-se das formas e geram a irracionalidade.

Tudo concorda.

Notas sobre o «Cristo» Che

Ainda não me deu para ir ver a incursão do Steven Soderbergh na hagiografia revolucionária. Mas, tendo em conta que é Soderbergh (o homem que trouxe para a minha vida filmes como o perfeito Traffic, a densidade emocional do metafísico Solaris ou o subestimado Out of Sight), acho que farei o sacrifício. Com sorte, saio satisfeito com uma história fraca - porque mitificada, lá está - contada com a mestria técnica do realizador, tal como já aconteceu com Erin Brockovich.

segunda-feira, abril 13, 2009

Reservation

A piada do mês, ouvida ontem, em Rocky Balboa (o filme de 2006), quando Paulie/Burt Young entra no restaurante agora gerido por Rocky/Stallone:

MARIE - Do you have a reservation?

PAULIE - Do I look like a freakin' Indian?

domingo, abril 12, 2009

Afonso Costa, o «Democrático»

A República foi uma maravilha que muito «Progresso» trouxe a Portugal, e quem veio perturbar o caminho das coisas foi Sidónio Pais, o «ditador». Mas o que ninguém refere é que foi o «ditador» Sidónio Pais, curiosamente, que em Maio de 1918 abriu as eleições presidenciais aos cidadãos. Já Afonso Costa, por outro lado, continua heroicamente destacado nos manuais escolares (com carga positiva) como um dos mais importantes políticos portugueses. O que também é curioso é que - para além de não gostar especialmente de ir à missa nem de quem fosse - era no seu tempo conhecido por «Racha-Sindicalistas» e consta que arrasava judicialmente e policialmente alguns opinantes que criticavam duramente os seus Ministérios. Faz lembrar algum político português actual?

Ritual diário

Leituras



Ler artigos antigos de Vasco Pulido Valente (VPV) tem qualquer coisa de clássico. Aliás, embora não tenha o pódio que pertence aos «anos de ouro» de Miguel Esteves Cardoso, a antologia O País das Maravilhas, que reúne textos de VPV no Diário de Notícias e no Expresso sensivelmente entre 1974 e 1979 aproxima-se dos livros obrigatórios para conhecer o Portugal dos últimos trinta ou quarenta anos. Se tanto se fala em Eça de Queiroz (referindo-se a ele, de forma muy irritante, apenas como «o Eça») e em Ortigão, talvez fosse importante retirarmos da gaveta alguns cronistas e escritores que, mais do que escreverem a grande ficção ou a grande poesia, retrataram um Portugal imortal e imobilizado no tempo. Se eu pudesse escolher um livro de crónicas, política ou cultura para reeditar urgentemente, seria certamente O País das Maravilhas.

sexta-feira, abril 03, 2009

Escritor e poeta

Porque é que vejo tantas pessoas a descreverem escritores que enveredaram pela prosa e pela poesia como «escritores e poetas»? Então mas os poetas também não são escritores? E a poesia se não é escrita, então é o quê, cuspida?

Walser



Robert Walser (1878-1956), um escritor admirável

Escrever e respirar II

Mas há algo que percebo, e essa explicação já a creio por completo: que alguém escreva para dar um sentido à vida. Provavelmente, aí a escrita será um dos actos mais sensatos que se pode ter, já que nesta coisa disforme e misteriosa que é passar umas quantas dezenas de anos enquanto «ser vivo», deixar pensamento e criar algo pela escrita pode muito bem ser algo que dê qualquer coisa como um «sentido» à vida.

Escrever e respirar

Fico realmente desconfiado quando vejo escritores largarem numa entrevista, pelo meio de muitas outras palavras, a maior frase feita desse meio: «preciso de escrever». É de desconfiar disto, sobretudo quando é acompanhada por «escrever para mim é como respirar» ou «não vivo sem escrever». Tudo bem, compreende-se a necessidade de criar, de registar o que se pensa e até mesmo - porque é a meta última de qualquer sujeito que escreva - de publicar. Mas não me parece que escrever seja «como respirar», nem tão importante na vida de alguém como, sei lá, as pessoas que lhe são próximas. Nem para um escritor. Eu, por exemplo, ainda que não seja um escritor, tenho fases em que não sai uma única palavra. Por desinspiração? Melhor: por preguiça.