sábado, fevereiro 18, 2006

A casa que cai



Normalmente, não há casa que caia que não faça desmoronar os sentimentos da populaça. Nos telejornais, por exemplo, não raros sãos os casos de lágrimas incontidas que se deixam mostrar, de cada vez que uma casa se desmonta, tijolo por tijolo. Mesmo o célebre caso da explosão de dois prédios na ilha de Tróia mostrou que a populaça sofre imenso quando a casa vai abaixo. O enxame de gente que se amontoava na cidade de Setúbal para visionar a queda de dois prédios comprova isso mesmo. Diga-se, aliás, que, no caso de Tróia, até o senhor primeiro-ministro parecia fazer um olhar sofrido no momento da explosão. Isto talvez se explique pelo sentimento humano de amor pela destruição ou, numa perspectiva mais realista, pelo amor do português a tudo o que tenha custado suor e horas de trabalho.

A expressão «Até a barraca abana», tornada célebre por um actor que, no passado, fazia o papel de «Excelência» num programinha de Marina Mota, pode ser vista como uma espécie de comprovativo para aquilo a que se pode classificar de sentimento unânime de amor por tudo aquilo que mete trabalho e paciência ao barulho. As barracas dos ciganos são de uma qualidade que roça a quase total desumanidade. As habitações de alguns velhotes de aldeias são desprovidas de condições de higiene básicas. Porém, quando se trata de mudar de modo de vida, mesmo que essa mudança implique uma melhoria substancial, até a barraca abana. Porquê? Porque, mesmo que um indivíduo viva na mais nojenta das barracas, a verdade é que a casa que o viu nascer é a sua casa, o seu lar. Palheiro, barraca, adega, ou mansão, neste caso, é tudo a mesma coisa. Quem mora num local durante muitos anos não consegue afastar-se desse mesmo local facilmente.

Este sentimento de doce lar alastra-se aos vizinhos, como se de um vírus se tratasse. Assim, quando uma grande empresa imobiliária se disponibiliza para construir um casino em cima de casas velhas e degradadas, oferecendo aos moradores dessas casas velhas dinheiro ou novas habitações, o caso ganha contornos de tragédia. Seja bruxedo ou apenas intervenção do diabo, não há vizinho que não se prontifique a dar cabo do canastro dos «porcos capitalistas que, se um gajo não for a ter cuidado, ainda nos compram as filhas». Nestes casos de ajuda popular, a gritaria é enorme e a presença de jornalistas no terreno não ajuda em nada. «Então, a sua casa de toda a vida vai mesmo cair?», perguntava um jornalista um dia destes na televisão. Em resposta, o jornalista obteve da dona Maria da Conceição um pequeno suspiro e um desmaio, como se esse desmaio fosse uma metáfora da casa que vai cair. Ao verem a senhora desmaiar, os vizinhos vieram todos ajudá-la. E gritavam todos, sem excepção, frases de honra, tais como «Portugal é uma vergonha!», «A casa cai mas nós vamos com ela!», «O chouriço é bom mas carne de borrego é melhor!». Enfim, quando se trata de fazer cair a casa, o melhor é chamar o Evaristo, para ele vir cá abaixo ver isto.


[Paulo Ferreira]

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