segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Andar na linha

Parece que andar na linha não é uma das qualidades exigidas aos portugueses para viver bem no nosso país. Não falo de «andar na linha» no sentido em que o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros não o faz. Refiro-me sim, é claro, ao primor ou desprimor físico dos homens e mulheres portugueses. À forma como os portugueses, quando não vidrados aos anúncios de iogurte na televisão, se perdem pelos escusos corredores da gastronomia, para desembocar na plena inércia do corpo. Devo acrescentar que a minha experiência nesse aspecto tem sido significativa para poder escrever este post.

É fácil para um homem perder as perninhas de jogar futebol e a «cintura do dribble» nas «casas» deste país. Nem é preciso ir a uma «casa» pretensamente tradicional (onde, paradoxalmente, se deixa as poupanças do mês inteiro). Basta passar algumas horas numa «casa de pasto». Pronto, vá lá, numa tasca. Numa verdadeira tasca. Talvez se o excelentíssimo representante de Portugal Jorge Sampaio soubesse o que eu faço pela exaltação dos valores e da cultura portuguesa nestes antros, já eu teria, perdida algures no quarto, uma medalha de honra de alguma ordem nacional. Mas não. Diz-me um humildemente genial familiar, versado em geral nas mesmas leituras e bebidas do que eu, que já não há tascas em Lisboa, o que poderá bem ser verdade. No mínimo dos mínimos, perdera-se o espírito, mesmo que a tentativa de reavivar o espaço esteja lá. Mas a verdadeira essência de comer uma sandes de qualquer coisa frita (não me lembro o quê) e um enorme copo de vinho sem origem, emanado talvez do Olimpo, há muito que desapareceu, salvo em alguns locais de eleição, que mantenho no segredo.

Por outro lado, «andar na linha», ou «manter a linha», é uma tarefa, mais do que difícil, indesejável. Ser belo e esbelto tem os seus contras. É provável que a última hipótese restante de travar contacto prolongado com Letícia Spiller simplesmente se esfuma depois de devastarmos um grande e comovente prato de carne de porco à alentejana, com amêijoas à mistura. Por outro lado, deixa de ser possível - escandalosamente, concedamos - imitar as habilidades de Ronaldinho Gaúcho ou saltar como Michael Jordan. Mas há também sinais em sentido contrário. Quando assustados com o rumo que toma o nosso peso e a nossa capacidade atlética, há sempre a possibilidade de ligar a televisão e encontrar Shaquille O'Neal na televisão fazendo jogos míticos. Por outro lado, temos Eric Cantona, que antes dava pontapés aéreos aos adeptos mais pertos do relvado (um mimo à maneira francesa) e agora é galã de televisão. Ainda neste extremo (repito, neste) há o caso de Séneca, que, sendo caracterizado como abjectamente feio, educou os tiranos do seu tempo. Para mais, formulou um dos grandes argumentos de defesa da história do Homem: «vários incoveninentes se oferecem a quem se preocupa em excesso com o físico: por um lado o esforço exigido pelos próprios exercícios tira-nos o fôlego e deixa-nos incapazes de atenção e de aplicação a um trabalho intelectual intenso; por outro, o excesso de alimentos limita-nos a inteligência. (...) Pensa também que quanto mais volumoso for o corpo mais entravada e menos ágil se torna a alma». E aqui deixo a minha vénia a um dos maiores inimigos do exercício físico da história dos homens.

[João Carlos Silva]