quarta-feira, março 29, 2006
Um burguês
Um dos escritores portugueses mais injustamente esquecidos é, provavelmente, José Rodrigues Miguéis. Mas, assim como posso dizer que se comete uma enorme injustiça ao remetê-lo para um passado indistinto na literatura portuguesa, também poderia dizer que Rodrigues Miguéis é um escritor cujo tom expresso em obras suas acaba por votá-lo, obrigatoriamente, ao esquecimento. Um tom despretensioso e coloquial em muitos dos livros que compilam artigos e crónicas suas, em especial nas Reflexões de um Burguês, textos sobretudo resgatados da Seara Nova. Isto, é claro, nem sempre cai da melhor forma entre círculos letrados. Muito embora seja um tom coloquial que nasce da sua mesma erudição. Repare-se: Antes comer bem por uma vez do que levar a vida em pecado mortal, com a barriga a sonhar com o porco da salgadeira. Dá vontade de parafrasear São Paulo, deve ser São Paulo: «Vale mais um homem farto que um homem danado.» Arrebente para aí, mas vá regalado.
Mas Rodrigues Miguéis não é só este escritor pioneiro do neo-realismo português, influenciado também, sem dúvida, por alguns autores norte-americanos do início do século XX. Ressalve-se, por exemplo, o seu romance de estreia - Páscoa Feliz (1932) -, onde surge, das profundezas da sua imaginação, um imaginário dostoievskiano. Deve ser o fado que me leva a fazer a comparação com o russo, comparação que será sempre um eterno lugar-comum, mas Páscoa Feliz é, de facto, um excelente romance/conto longo sobre as alucinações urbanas de um homem levado à ideia de um crime gratuito. Devia ser mais contida a comparação com Dostoiévski, mas neste caso é realmente flagrante a influência que este tem no romance sobre crime e remorso (aqui antecipado, antes da consumação do acto) que Miguéis escreveu.
Começou a sua vida em Lisboa e terminou-a em Nova Iorque, com 78 anos, numa cidade simbólica para explicar a motivação da sua extensa obra «sobre» Lisboa e Portugal, mesmo quando não é «sobre» estes seus saudosos locais. Eduardo Lourenço caracterizou-o como escrevendo da perspectiva de um «estrangeiro». Um vetusto senhor caracterizou-o, enquanto olhando o horizonte, como «um burguês». Já eu caracterizo-o como um óptimo escritor, um autor multifacetado, um grande narrador da vida dos homens e dos portugueses (vistos «de fora») que, espero, ainda possa voltar às leituras do comum lusitano. Espero, mas não acredito.
[João Carlos Silva]
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