domingo, março 19, 2006

O alívio do movimento


A auto-estrada em horas de ponta é um lugar incerto. Um desencontro com a sanidade ou, vá lá, com a paz de espírito de cada um. Repare-se no homem que acelera de Sul para Norte em direcção à Ponte 25 de Abril, pisando a fundo o acelerador, com um rasgado sorriso na cara. É um homem civilizado, dentro do seu fato azul-escuro de executivo, em direcção da sua pequena réplica lisboeta de Wall Street. Vai direitinho, hirto no banco do automóvel, falando ao automóvel em alta voz ou ouvindo a rádio na estação de economia.

Mas, de repente, ao quilómetro vinte um, o mundo desmorona-se: as luzes vermelhas de travagem brilham ao longe, e o homem entra em desfibrilhação, o pânico toma o controlo da situação. «O que se passa? O que se passa?», e meneia a cabeça para a direita e para a esquerda, boquiaberto, como se não soubesse perfeitamente o que se passa. Liga rapidamente para oito ou dez pessoas apenas para dizer, exaltado, que se vai atrasar, como se estivesse sequestrado num voo da American Airlines: «Eu não sei... Isto... Não vou conseguir... Já ligo...». Não sabe o que fazer, onde pôr as mãos, abranda o carro a duzentos metros da fim da fila, como se adiasse a guilhotina. Coça o queixo, a orelha, o pescoço. Muda a estação de rádio para uma de notícias de futebol, para um programa onde se discuta a defesa do Benfica, e sorri como um louco. Falando em loucos, abre o vidro, põe o braço esquerdo de fora e a cara ao vento. Volta para dentro e assobia. Assobia. Bate com os pulsos no volante do carro. Olha para o carro da esquerda, olha para o carro da direita, depois novamente para o da esquerda, e desconfia do vizinho. O vizinho passa a desconfiar também dele. Olham-se e olham a frente, voltam-se a olhar e assim sucessivamente, caminhando para um duelo ao amanhecer. A tensão aumenta.

Então, o inesperado acontece. A fila desfaz-se, e os carros começam a avançar, a arrancar em debandada. O homem sorri, de repente, como um náufrago, volta a ser civilizado, como um moribundo que viu a luz ao fim do túnel e voltou à vida. Encara isto como um sinal divino. Olha de novo para o «vizinho» da esquerda. Sorriem muito um para o outro, e acenam apaixonadamente como se estivessem nos jardins de Oxford. «Adeus, meu caro amigo». Os carros partem de novo. O homem acelera, acelera muito. As nuvens partiram. O Sol brilha de novo.
Quem disse que o português não gosta de se mexer?

[João Carlos Silva]