sexta-feira, março 24, 2006

Como os cães



Poderia começar por falar do dr. Freud para explicar a minha vida. Mas não vale a pena. A história é simples e resume-se a isto: a minha vida é uma desgraça. Com efeito, outro galo cantaria se, em vez de me pôr aqui a escrever sobre coisas que nem a mim interessam, procurasse resolver todos os problemas que me atormentam. Mas não. Fico aqui a olhar para os dias que passam, como se esses dias se pudessem prolongar até ao fim da linha recta do destino, até à morte. Infelizmente, coisas como a saudade e as enxaquecas não me passam ao lado. Sou um homem atormentado. Tão atormentado que hoje, ao tentar ler o jornal do costume, pensei em atirar-me da janela do prédio. Mas, como digo, não valeria a pena. Sou um homem atormentado e, porque também sou supersticioso, o melhor é ficar sossegadinho no meu canto à espera que o Senhor me leve. Sou novo, é verdade. Talvez jovem, se não se considerar que na Idade Média um homem de vinte e um anos pudesse ser velho. Porém, o meu fado é tão negro que já nem me lembro que ainda tenho a vida toda pela frente. Sou rejeitado na minha própria terra. Miséria.

Verdade seja dita que também já muito rejeitei. Não sou a Suzana Flag do Nelson Rodrigues e, por conseguinte, não tenho como destino pecar. Mesmo assim, já rejeitei. Por necessidade, diga-se. E por já ter rejeitado por necessidade também me sinto ligeiramente atormentado. Ninguém rejeita por necessidade. Ninguém. Nem eu, se vivesse em condições normais. Mas não vivo. Vivo atormentado. Sinto saudades. De várias pessoas. De várias coisas. Mas o tempo que passou já não volta. Não volta mesmo. Fartei-me de esperar e nada. Nada. Zero. Nem uma fotografia dos meus álbums perdidos se dignou a visitar-me. Nem um casaco azul de adolescente me telefonou. Nada. E a linha do telefone não pára de transmitir aquele som irritantemente contínuo. E nada nem ninguém se digna a dizer-me que também eu sou homem e que existo. Não é justo, até os cães possuem memória.

[Paulo Ferreira]