terça-feira, março 28, 2006
Distraído, meu caro rafeiro!
Na adolescência, havia uma professora que passava a vida a apelidar-me de distraído. Eu, sempre ingénuo, acreditava. Porém, com o passar dos anos, fui-me dando conta de que aquilo de que era acusado pela minha velha professora não correspondia à realidade. Não era nem nunca fora distraído na vida. As velhas arranjam sempre maneira de aborrecer uma pessoa, especialmente se essa pessoa pouco estudar e teimar em tirar boas notas. Ora, o certo é que, à medida que a barba me foi crescendo na face e as raparigas com quem eu sonhava iam arranjando namorados, me fui dando conta de que a distracção nunca poderia fazer parte da minha vida. Se um tipo como eu se desse ao luxo de ser distraído, estaria tramado. Tramado. Como o Bruce Willis do lendário Die Hard, eu nunca poderia permitir que a minha pessoa não correspondesse, como se de um pequeno gato rafeiro se tratasse, aos apelos feitos pela sociedade.
A menina dos caracóis castanhos que me fazia suspirar na infância, por exemplo, nunca na vida me passara ao lado. Eu era demasiadamente atento para deixar a mais bonita miúda do bairro escapar-se do meu olhar sem que eu nada fizesse. E, com efeito, eu não me limitei a ficar de braços cruzados. Agi. Actuei. Mandei-lhe uma carta. E a mãe da menina dos caracóis castanhos logo me preveniu com um valente pontapé no traseiro, como se me quisesse dizer que, por vezes, a atenção tem o seu preço. Uns anos mais tarde, tive, de igual modo, uma excelente oportunidade para perceber que era um sujeito muito pouco dado a desatenções. Se não me engano, num quente mês de Agosto, a turminha da preparatória, em plena festa de final de ano, acampava durante seis dias seguidos numa infernal pousada da juventude lá para os lados do Gerês. A professora de inglês, a melhor de todas, ficava no meu quarto a « pedido expresso do menino mais atormentado de todos». Resultado: desobriguei, durante todo o mês seguinte, todos os exemplares da Gina que tinha em casa de me auxiliarem na necessidade. Um rapaz esperto, portanto. E muito pouco desatento, diga-se.
A verdade é que a minha esperteza nem sempre tem correspondido àquilo que eu idealizara na infância. O passado diz-me que eu sou um tipo pouco dado ao alheamento. E daí? O presente diz-me que as minhas cabeçadas contra a parede são muitas. O futuro diz-me que as cambalhotas não serão poucas. De que me vale ter a ficha limpa de distracções? Nada. Até porque, para ter a vida deste modo, algo me terá, necessariamente, passado ao lado.
[Paulo Ferreira]
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