Numa tarde inspiradora, vários jovens participavam nas captações do Sport Clube União Torreense. Era para ver quem ficava nos iniciados e o mestre orientador era Toinha, o grande papão, o «mister». O campo era sintético e qualquer encosto ao chão queimava. Os pés aqueciam. Vestir o colete vermelho era sinónimo de «ficar». Um desses putos que queriam jogar no grande clube de Torres Vedras era eu e, naquela tarde, recebi o colete vermelho. «Médio-esquerdo», disse-me o treinador. «Só jogo com o pé direito», respondi eu para me desculpar da falta de jeito que, normalmente, demonstrava possuir. Naquela tarde, talvez por vergonha, não cheguei a levantar as chuteiras da linha de meio-campo. Não corri. Mesmo assim, no dia seguinte, lá estava eu, pronto para mais um treino de captação. E a coisa correu melhor. O colete foi-se habituando ao meu suor e parece mesmo que acabou por se fixar à pele.
As primeiras semanas do Outono eram ainda quentes e, por conseguinte, não faltavam as mangueiradas de água nos descansos da bola. O sintético queimava menos. Havia menos pressão para impressionar e, claro, mais tempo para assistir àquilo que realmente interessava: aos treinos da equipa sénior no relvado do Manuel Marques (o estádio, para quem não saiba). Entre jogadores como Cláudio Oeiras, Jaime Baldé, Mauro, Casaleiro, entre outros não menos castiços, estava Nélson Pereira, a estrela da equipa. É de salientar que alguns deste pequenos craques eliminaram, no ano de 1999, o Futebol Clube do Porto nos quartos-de-final da Taça de Portugal. Nélson, esse, era diferente de todos os outros. Tinha carisma e os adeptos acarinhavam-no. Tanto assim era que o maior sonho de um puto das escolas só poderia passar pela imitação dos passos do guarda-redes. Não nos esqueçamos de que o Torreense tem uma certa tradição nesta posição. Refira-se, a título de exemplo, a existência de figuras como Humberto (que regressou há pouco a Torres Vedras) ou Nuno Carrapato.
O maior momento de Nélson no Torreense deverá ter sido, muito provavelmente, a subida à então chamada Segunda Divisão de Honra. Grandes defesas fez o homem durante aquela época. Dava, aliás, vontade de ver o Torreense jogar com aquele guardião do templo à frente das redes. Porém, na época de 97/98, Nélson foi para o Sporting, clube onde nem sempre foi bem compreendido. Se Tiago se caracteriza pela sua inépcia para a profissão que pratica, Nélson é exemplar – e certamente seria este ano o suplente de Ricardo, caso o seu contrato não tivesse caducado. Mas nem só de fracos jogadores vive o Sporting. Lembremo-nos do velhinho Peter Boleslaw Schmeichel, um dos melhores guarda-redes da história do futebol e que, inevitavelmente, viria a tapar o lugar ao craque da zona Oeste. Mais tarde, veio Ricardo e tudo se voltou a complicar para Nélson. É verdade que Nélson, ao serviço dos leões, nunca revelou a consistência que um grande jogador deve demonstrar, todavia, só andam afinadas as cordas das guitarras que muito utilizadas são. Não se podem exigir exibições homéricas a jogadores que não jogam, ou que têm a pressão dos erros do antecessor nas costas. Nélson, certo dia, fez uma assistência para um golo de Jardel (que jogava no Porto). Há um ano, Nélson viu o seu clube sair da Taça UEFA contra um fraco clube da Suécia. Paciência, todos falham. Veja-se Ricardo, o jogador que tanto joga para o frango como joga para ser dos melhores da Europa.
Ao fim de nove anos, Nélson saiu do Sporting e esteve para jogar no Huelva. Não deu. Como o SCUT é um clube que não fecha as portas aos bons, a estrela ficou a treinar-se no Manuel Marques durante uns meses. Até que, agora, o Vitória de Setúbal arranjou cabeça para agarrar no excelente jogador. É pena que Nélson tivesse adiado tanto tempo a sua carreira ao permanecer durante tantos anos num clube onde não jogava. É certo que nem só de palcos vivem os artistas e que o seu clube de menino sempre fora o SCP. Mas dava pena ver um jogador idolatrado em Torres Vedras sentado num banco frio, sem ao menos poder cuspir na borracha das luvas. De qualquer forma, Nélson nunca poderia jogar num grande clube. É que Nélson, para ser herói, tem que ser Nélson Pereira. Só o Pereira dá sentido às suas qualidades. Espero que, no Vitória, se compreenda isso. Afinal, se Acosta era matador, Sérgio Santos era implacável capitão, se João Pinto tinha uma capacidade técnica superior, Rosário compensava nas suas saídas nocturnas. Fua foi lançado em Torres. José António também.Paulo Torres quase lá pendurou as botas. Hiroshi está a despontar. Imprimam-lhe o Pereira na camisola, então.
[Paulo Ferreira]
quinta-feira, outubro 12, 2006
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2 comentários:
belo elogio
muito bom!
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