Welfare State, social-democracia, Saab, salmão fumado, Ikea. São muitas as coisas em que pensamos espontaneamente quando se fala da Suécia. Mas, quando se quer ser um pouco mais castiço, rapidamente se descobre algo de errado na nossa busca. Repare-se a definição que o dicionário tem para «sueca»: espécie de bisca em que cada parceiro joga com dez cartas e obriga a naipe. Ora, a não ser que um homem seja irremediavelmente português ou irremediavelmente inocente, a curiosidade que se tem ao procurar, no intervalo dos trabalhos, a palavra «sueca» num dicionário, é a curiosidade de saber o que se diz acerca das mulheres nascidas em Estocolmo ou, pelo menos, vá lá, com mais de um metro e oitenta de altura. Duvido que se procura o sentido de «sueca» no dicionário para surpreender os amigos ou colegas («eu sei definir o jogo da sueca e tu não sabes»). Até porque qualquer homem português que se preze (excluo da equação as mulheres, mais puras e menos dadas a jogos fúteis de enganar e tirar dinheiro a outros homens) sabe inevitavelmente o que é a «sueca», o jogo da sueca, até mesmo aqueles que passaram e passarão toda a vida a sonhar com o dia em que verão uma «sueca» de um metro e oitenta.
O meu caso é triste. Ou talvez não. Mas o facto de não saber jogar «sueca» como um homem, isto é, apostar alto, bater com o punho na mesa e lançar expressões eruditas juntamente com as cartas, faz de mim um marginal. Para ser franco, qualquer jogo que não tenha bispos ou peões para sacrificar torna-se-me um jogo muito chato, sem interesse.
Mas não se pense que os grandes peritos na matéria jogam à sueca por gosto. Nem mesmo pelo milenar espírito agónico que reina na alma de qualquer homenzarrão de taberna. Não, eles jogam à sueca por necessidade. Pela mais pura necessidade de escoar as expressões que estão presas na garganta (entupindo, muitas vezes, o discurso correcto, chegando ao ponto de não conseguirem falar português). Daquelas expressões que não se dizem em mais lado nenhum. Ora, não se pense que eu, por não saber jogar ao seu nível, fujo das zonas de jogo como o Diabo foge da cruz. Não, pelo contrário, se há coisa enriquecedora é ouvir a verborreia que acompanha os gestos.
Repare-se na extensa lista de frases, expressões ou conjugações existentes (escusado será dizer que só consigo expor uma infimíssima parte do Dicionário da Sueca):
- por exemplo, não se assustem quando um gordo disser, irado, a um bêbado: «Então?! Jogas a puta seca?!». É claro que o homem, concentrado no seu jogo, nem está a pensar em ofender o empenho físico e espiritual de uma mulher na sua profissão, digna como qualquer outra. O que ele quer dizer é que a rainha (ou a dama) foi jogada para a mesa, com grande risco de perder esses pontos;
- mais comum ainda é ouvir o ancião local do jogo a alertar o companheiro de equipa: «não te quero ver pôr a manilha seca». Esta expressão sempre me causou grande desconfiança. Porque é que se chamará manilha à carta sete? Procurando no dicionário, o mais frequente é ver a palavra definida como qualquer coisa perto de argola, pulseira ou bracelete. Talvez por isso todo o homem castiço se sinta inseguro por ver a manilha à solta na sua mesa. O mais comum é apressar-se a cobrir a manilha com um viril Ás, refreando os ânimos: «...da-se, que esta ficava»;
- depois, há que respeitar os jogadores. Mesmo quando estes, mesmo insultando os adversários (comummente «paneleiros»), insistem em proteger o colega de jogo da forma mais ternurenta: «Parceiro, joga que eu estou em cima de ti». Ou «Eu só jogo com o meu parceiro». Já para não falar daqueles menos discretos que insistem em olhar fixamente o colega e, quando ninguém vê, piscar-lhe o olho. Estas conversas e combinações são vagamente sexuais, sem dúvida. Freud pode ter escrito algo sobre isto, mas não sei onde. Portanto, sobre tudo isto, vou manter silêncio, por respeito aos jogadores. Até porque, cada vez mais, o mudar de parceiros para ver como é está a ficar na moda. Eu é que estou antiquado. Mas respeito;
- depois, há variações locais, regionais, individuais ou comunitárias das expressões da sueca. Quase todas sem grande explicação (aceito sugestões): «joga lá que já se faz cacimba»; «se a perna parte, é calo mole»; «galo sentado é bom negócio»; «joga lá rápido e não espetes o dedo no ar, que Deus está em todo o lado e ainda lhe pões o dedo no cu». Não há explicação certa.
Por isso, aconselho às pessoas que não têm grande jeito para as cartas (nem grande vontade de aprender), como eu, que se mantenham atentas. Em especial as que se querem candidatar a cargos públicos/políticos, mais solidárias com o país real. Porque, se não é nos cafés de bairro e nas mesas de sueca que encontram os melhores eleitores, os mais exigentes, então não sei onde será.
[João Carlos Silva]
quarta-feira, fevereiro 01, 2006
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