sábado, fevereiro 11, 2006

Sobre as liberdades

Sou uma pessoa indecisa. Mais ainda, considero-me um homem fraco quando chega a altura de decidir rápido. Caso fosse Presidente dos EUA, era bem provável que o Comunismo tivesse prevalecido. Caso fosse Primeiro-Ministro, confiaria na capacidade de cada um decidir por si, o que é o primeiro passo para a desgraça (especialmente em Portugal). Mas o que eu quero dizer com isto é que, apesar de achar que a indecisão, a necessidade de reflexão prolongada, seja negativa num cargo que se quer forte e determinado, a indecisão é também sintoma de pensamento. Não é por acaso que as figuras mais «decididas» são sempre os fundamentalistas, os homens de fé inquestionável e inquestionada. Acerca da Liberdade, a indecisão é, também ela, uma virtude.

Passo a explicar. Sou um liberal. Mas a Liberdade não é uma condição natural. Os homens «tornam-se» livres. Melhor ainda, «fazem-se» livres. Um homem não nasce livre. Não se deve confundir a liberdade de se poder acelerar um jipe com música asiática em pleno deserto enquanto se atira à toa contra a fauna que deambula descansada pela região com a liberdade de se poder atravessar uma cidade cheia de gente sabendo que todo o homem que nos molestar será (ou seria, com uma Justiça que funcionasse na perfeição) punido por isso. Ou seja, a Liberdade não é um conceito fácil. Logo, sou um «liberal com problemas de consciência» - porque sei que essa Liberdade tem um custo, tem de ser defendida de forma agressiva, o que surge como algo paradoxal.

Não acredito no «centro». Não acredito em homens «abertos a todas as crenças». Alguém que concorda, por exemplo, com as linhas do PCP assim como com as do PSD não pode ser um homem sério. É apenas alguém que tem medo de, se se juntar a um dos lados, ser «crucificado» pelo outro lado. A isto não se chama indecisão, mas sim cobardia. Assim como temos Presidentes que passam o tempo «expressando preocupação», também há homens que acham que a condenação de um assassino em série (a prisão perpétua é o verdadeiro castigo, a «punição empenhada») deve ser um caso para reflexão e «apuração sociológica das causas». Não, a indecisão é outra coisa.

Por isso, é importante realçar algo. É preciso realçar que o que está em causa na discussão dos cartoons que o jornal dinamarquês publicou, e das consequências que tal motivou, não é se os muçulmanos que se têm «manifestado» (e atenção que quem se manifesta de forma violenta, partindo tudo o que vir à sua frente, não é um terrorista de Maomé, mas sim mais um pobre diabo, manipulável e com pouca inteligência e sentido de respeito, à imagem dos que sempre tivemos na nossa tão educadinha Europa) o fazem legitimamente. Porque o fazem - o objectivo do cartoon era a provocação, a ofensa, desafiar os muçulmanos para ver se agitavam esse mundo, se chegava a este ponto, e chegou. É positivo, mostra que as opiniões fortes estão de boa saúde.

Não, o que está em causa nesta discussão é saber se a Lei de Talião (por sinal, uma lei semita, pagã, anterior às religiões que conhecemos hoje) realmente deve ser exigida ao mundo do Próximo Oriente. Porque todos nós, ocidentais, sofremos de algo que nos tolda a visão, uma «síndrome da distância». Uma inexplicável tendência para exigir a um homem do outro lado do Mundo que aceite as liberdades políticas (e, porventura, a democracia) da mesma forma que nós as aceitámos. Tal como queremos julgar, negativamente, a maioria do Oeste americano que acredita no direito de ter uma arma para se defender a si e à sua família - numa Europa em que há muitas gerações não conhecemos espaços livres, desertos a perder de vista, sem segurança, não se pode compreender o que sente um «texano». Não é possível.

O que é possível é considerar o que aconteceu junto das embaixadas e empresas dinamarquesas da seguinte forma: a liberdade de expressão implica que se esperem reacções negativas. Não se pode esperar que um homem seja ofendido directamente e aceite a ofensa. Ao ofender alguém, espera-se resposta. E os muçulmanos, quer queiramos quer não, foram «duramente» ofendidos - o que é bem grave num sistema moral e ético rígido como é o do Corão e da Sunna -, mesmo que Maomé não seja uma divindade. O que está em causa discutir agora é se aqueles homens, instigados por altas personalidades no mundo anti-cristão e anti-judeu, têm o direito de responder violentamente às ofensas, afectando assim de forma grave a liberdade de expressão (mesmo a levada ao extremo) de cada um de nós. Porque motivos têm. No entanto, perante as reacções, e perante o que acreditamos ser a melhor via de coexistência (a Liberdade, o direito à opinião), «pedir desculpa» é o pior que se pode fazer. Pode-se lamentar a natureza da opinião (mesmo que isso seja invalidar toda a razão de ser de um cartoon), mas nunca pedir desculpa por tê-la dado. Isso é abdicar das quase únicas liberdades que já, há muito, temos garantidas.


[João Carlos Silva]