terça-feira, fevereiro 28, 2006

Um ano

Assinalou-se ontem o primeiro «aniversário» do Insurgente. Um ano de memoráveis insurgências.

[João Carlos Silva]

domingo, fevereiro 26, 2006

A ler

O "crime de ódio" em larga escala (como há pouco tempo a perseguição e o espancamento de negros no Bairro Alto) tem uma clareza que o crime "individual" não tem. A lei não os pode confundir, nem lhes deve dar um tratamento igual. Misturar tudo, não.

- Vasco Pulido Valente, O Espectro, 25/02/2006

[João Carlos Silva]

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

El Cid

A ler o post do dia, de valter hugo mãe, sobre José Cid. E com foto vintage.

[João Carlos Silva]

O cantor melancólico



Passaram ontem dezanove anos da morte de José («Zeca») Afonso. Diga-se o que se disser da sua vida, era um óptimo músico. E uma figura querida de Setúbal. Ainda que indivisível do sentimento revolucionário, do movimento comunista, José Afonso fica na memória pelo traço profundamente melancólico, lancinante, de muitas das suas canções, com um valor bem maior do que o que lhes é «politicamente» atribuído.

[João Carlos Silva]

Palhaços

Dizem por aí que «no Carnaval ninguém leva a mal». Estão errados.

[João Carlos Silva]

Suicidas

Comovem-me tanto quanto me irritam os suicidas exibicionistas que às vezes ficam horas numa cornija ou platibanda, a observar a multidão que de baixo os observa, e de repente, quando - ao cabo de inúmeros e demorados preparativos - a mão dum bombeiro ou polícia se estende para os salvar, se precipitam no espaço da morte. Outros parlamentam horas com um padre, rabino ou pastor, e acabam por se resignar à vida, com grande desapontamento dos basbaques que, da rua, os assobiam e apupam... Querem vê-los morrer! Houve um, porém, que se atirou sem aviso prévio do parapeito do Empire State Building, a cerca da altura da Torre Eiffel: antes de pular, virou-se para os turistas surpreendidos, que admiravam a coragem da brincadeira, e exclamou: «Até logo, amigos!».

- José Rodrigues Miguéis, Gente da Terceira Classe

[João Carlos Silva]

Sopa de estrelas

Em 1973, quando Pharell Williams nasceu, Catherine Deneuve estava à beira do trigésimo aniversário. Por isso mesmo, mandam as boas maneiras que se diga que a edição de Inverno da revista Citizen K faz capa com a estrela francesa, com o rapaz do hip hop a assumir a pose de simpático e competente figurante. Nada contra o hip hop, entenda-se. Mas este é um tempo cruel em que a televisão promove a sinistra noção de ser "famoso" através da vulgaridade das imagens, da mediocridade das palavras e da boçalidade das ideias. Importa, por isso, resistir à confusão e não deitar fora alguns ancestrais valores iconográficos com a água do banho mediático.

- João Lopes, , 24/03/2006

[João Carlos Silva]

Honestidade

Todas as pessoas honestas gostam, na verdade, de ser tidas por tratantes, uma vez que ser honesto está ao alcance de qualquer palerma irresponsável. Ser tido por honesto não é mais, afinal, do que ser considerado ridículo.

- Robert Walser, O Salteador

[Paulo Ferreira]

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Levar jeito II

Levar jeito para determinada coisa não é fácil, embora muita gente afirme que leva muito jeito para múltiplas coisas. Eu, por exemplo, não sou sujeito que se envaideça com essas coisas. Sou muito humilde, como Rousseau. Mas, como digo, existem pessoas que, apesar de não levarem jeitinho nenhum para a coisa, se vangloriam por pensarem que têm muito jeito para a dita coisa. Por exemplo, conheço indivíduos que nunca jogaram futebol dizerem que fazem passes à Hugo Viana. Como é que se explica a uma pessoa que nunca jogou futebol que é impossível fazerem-se passes iguais a um jogador de futebol profissional, quando nunca se jogou futebol? Conheço ainda criaturas que dizem que escrevem da mesma forma que Pulido Valente. Enfim, conheço pessoas que se dizem capazes dos feitos mais audazes.

Das pessoas que sempre se consideraram muito talentosas para realizar determinados tipos de actividades, destaco umas: aquelas que se acham mestres do sexo e do engate.
Existe um tipo um tanto ou quanto anormal que, de cada vez que vê uma mulher passar por si, exclama um sexy bum-bum para os seus amigos. Outras vezes, esse mesmo tipo, quando se vê acompanhado por uma nobre representante do sexo feminino, trata logo de passar pelos seus amigos, para que estes o vejam como a criatura divina e omnipotente em tudo o que diga respeito a sexo. Mas, este sujeito, como disse, um tanto ou quanto anormal, revela-se melhor nas suas conversas. Em primeiro lugar, porque é fanhoso e nunca se apercebeu desse inexorável facto. Em segundo lugar, porque, quando alguém levanta o tenebroso assunto das relações sexuais, este indivíduo, que boceja antes de falar, diz coisas como «Meu amigo, se soubesses como estou cansado de mulheres. Ainda ontem a Audrey (cidadã australiana imaginária que também poderia ser a Monica Bellucci) me sugou até ao tutano!» Preciosidades, portanto.

Por outro lado, existem criaturas muito dotadas para certas coisas, mas que nunca o admitem. Por exemplo, o «corno manso», que é uma criatura muito universal, nunca revela aos outros que é uma pessoa extremamente capacitada para se deixar tourear. Infelizmente, diga-se. Se estes indivíduos dotados de capacidade natural para se deixarem trair se revelassem ao mundo, as coisas seriam completamente diferentes. Dostoievski nunca teria escrito o Eterno Marido e muitos pais de família nunca se teriam deixado afundar pela bebida. Além disso, a verdade é que estes eternos maridos levam jeito para a coisa. Levam mesmo.

[Paulo Ferreira]

Levar jeito

Sempre me considerei um salteador, um ladrão de estrada. Porém, nos últimos tempos, vários acontecimentos levaram-me a dar razão à minha primeira namorada, que sempre me dizia que eu não tinha jeito para a coisa.

[Paulo Ferreira]

Napoleão como personagem literária


«'Bring me the eagles which have led us through so many perils and so many glorious days.' His command was followed, and as the birds of war and empire perched before him seemingly for the last time so Napoleon lifted the silk square hung below one of them and, for a full minute, buried his face among the names of battles embroidered in gold upon it. Tears had begun to trickle down the faces of the Old Guard and now, as he bade them farewell, many were openly sobbing.»

O universo bibliográfico/biográfico de Napoleão Bonaparte talvez seja, juntamente com o de Hitler, um inerentemente saturado. Quase se pode dizer que não há espaço para mais um livro sobre o mesmo. Mas a biografia de Stephen Coote sobre o último (sejamos realistas) imperador francês, pelo menos na sua verdadeira dimensão e glória, é uma obra que merece alguma atenção. Napoleão, quer queiramos quer não, é uma figura capaz de, pelo bem ou pelo mal, obscurecer mesmo a tenebrosa mas curiosa figura de Hitler. As suas qualidades são reconhecidas, militares e diplomáticas. Os seus defeitos, ironicamente, não derivam de qualquer falha de julgamento, mas de um exacerbamento das próprias qualidades já referidas. De um mau cálculo não de um mundo que o rodeava mas de uma França que não podia durar e combater eternamente apenas pela «Pátria».
Stephen Coote escreve uma biografia geral, pessoal, como um romance - em Napoleon and the Hundred Days -, com uma fluência mais literária do que histórica. E, confesso, para mal da «seriedade académica»: é esta fluência que prefiro.

[João Carlos Silva]

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Sobre a propaganda académica


A «questão dos cartoons» abriu ou reabriu algumas portas, nomeadamente as da liberdade de expressão. No mínimo, «obrigou» uma maioria das sociedades e dos meios de comunicação ocidentais, não só a ter em conta, mas também a proteger a liberdade de expressão. No entanto, as circunstâncias em que tal foi feito talvez possam confundir muita gente. Em relação a David Irving, julgado pela sua posição pretensamente «académica» (negacionismo em relação ao Holocausto), tem-se caído no erro de misturar a liberdade de expressão com a completa anarquia intelectual. Irving académico? É mais lógico chamar-lhe de «pseudo-irreverente frustrado», quando não propagandista falhado. O negacionismo não é novo, portanto encará-lo como um qualquer «crime de opinião» parece-me um julgamento faccioso. De qualquer forma, elevar a tese de Irving à qualidade de «tese legítima» também me parece exalar um cheio nauseabundo a air du temps. A liberdade de expressão traz a paradoxal imposição de uma exigência intelectual que, sem dúvida, há muito demoliu a visão de David Irving - morta à nascença.

[João Carlos Silva]

O diabo ao volante

«Esqueço que andar - a pé, de gatas ou mesmo de rastos - é um direito natural absoluto, e que conduzir um carro é uma mera concessão dos altos poderes. E eu que, entregue a mim mesmo e desarmado, não faço mal a uma mosca; eu, que, no eléctrico ou no autocarro, cedo o lugar às senhoras (em especial no seu estado interessante), aos velhos e aleijados, e acaricio a cabeça das crianças, trato por Vssa Excelência a mais humilde esfregadeira e me desfaço todo em desculpas se piso o calcanhar de um sujeito na rua, e à mais leve expressão de enfado ou irritação do próximo me sinto humilhado ou culpado - quando empunho o volante julgo-me no direito super-humano (ou desumano) de atravancar praças e ruas, de passar adiante de todos, de pôr mulheres, velhos, paralítcos e crianças em fuga desordenada!»

- José Rodrigues Miguéis, A Amargura dos Contrastes

[João Carlos Silva]

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Liberdade individual



O exemplo de Roosevelt reforçou por toda a parte a democracia, ou seja, a ideia de que a promoção da justiça social e da liberdade individual não significa necessariamente o fim de um governo eficaz; que o poder e a ordem não se identificam com o colete de forças de uma doutrina, tanto económica como política; que é possível conciliar a liberdade individual - uma textura flexível da sociedade - com o mínimo indispensável de organização e de autoridade; é nesta convicção que reside o que o mais eminente predecessor de Roosevelt definiu uma vez como a «última e melhor esperança da terra».

- Isaiah Berlin, A Apoteose da Vontade Romântica

[Paulo Ferreira]

Andar na linha

Parece que andar na linha não é uma das qualidades exigidas aos portugueses para viver bem no nosso país. Não falo de «andar na linha» no sentido em que o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros não o faz. Refiro-me sim, é claro, ao primor ou desprimor físico dos homens e mulheres portugueses. À forma como os portugueses, quando não vidrados aos anúncios de iogurte na televisão, se perdem pelos escusos corredores da gastronomia, para desembocar na plena inércia do corpo. Devo acrescentar que a minha experiência nesse aspecto tem sido significativa para poder escrever este post.

É fácil para um homem perder as perninhas de jogar futebol e a «cintura do dribble» nas «casas» deste país. Nem é preciso ir a uma «casa» pretensamente tradicional (onde, paradoxalmente, se deixa as poupanças do mês inteiro). Basta passar algumas horas numa «casa de pasto». Pronto, vá lá, numa tasca. Numa verdadeira tasca. Talvez se o excelentíssimo representante de Portugal Jorge Sampaio soubesse o que eu faço pela exaltação dos valores e da cultura portuguesa nestes antros, já eu teria, perdida algures no quarto, uma medalha de honra de alguma ordem nacional. Mas não. Diz-me um humildemente genial familiar, versado em geral nas mesmas leituras e bebidas do que eu, que já não há tascas em Lisboa, o que poderá bem ser verdade. No mínimo dos mínimos, perdera-se o espírito, mesmo que a tentativa de reavivar o espaço esteja lá. Mas a verdadeira essência de comer uma sandes de qualquer coisa frita (não me lembro o quê) e um enorme copo de vinho sem origem, emanado talvez do Olimpo, há muito que desapareceu, salvo em alguns locais de eleição, que mantenho no segredo.

Por outro lado, «andar na linha», ou «manter a linha», é uma tarefa, mais do que difícil, indesejável. Ser belo e esbelto tem os seus contras. É provável que a última hipótese restante de travar contacto prolongado com Letícia Spiller simplesmente se esfuma depois de devastarmos um grande e comovente prato de carne de porco à alentejana, com amêijoas à mistura. Por outro lado, deixa de ser possível - escandalosamente, concedamos - imitar as habilidades de Ronaldinho Gaúcho ou saltar como Michael Jordan. Mas há também sinais em sentido contrário. Quando assustados com o rumo que toma o nosso peso e a nossa capacidade atlética, há sempre a possibilidade de ligar a televisão e encontrar Shaquille O'Neal na televisão fazendo jogos míticos. Por outro lado, temos Eric Cantona, que antes dava pontapés aéreos aos adeptos mais pertos do relvado (um mimo à maneira francesa) e agora é galã de televisão. Ainda neste extremo (repito, neste) há o caso de Séneca, que, sendo caracterizado como abjectamente feio, educou os tiranos do seu tempo. Para mais, formulou um dos grandes argumentos de defesa da história do Homem: «vários incoveninentes se oferecem a quem se preocupa em excesso com o físico: por um lado o esforço exigido pelos próprios exercícios tira-nos o fôlego e deixa-nos incapazes de atenção e de aplicação a um trabalho intelectual intenso; por outro, o excesso de alimentos limita-nos a inteligência. (...) Pensa também que quanto mais volumoso for o corpo mais entravada e menos ágil se torna a alma». E aqui deixo a minha vénia a um dos maiores inimigos do exercício físico da história dos homens.

[João Carlos Silva]

domingo, fevereiro 19, 2006

Dar um pouco de razão ao mito

Desde pequeno que me habituei a ouvir as míticas histórias dos três pastorinhos, muito embora nunca me tenha comovido de forma sincera com as lendárias aparições de Nossa Senhora de Fátima. Independentemente das minhas convicções religiosas, nunca tive disposição para levar a sério o fundamentalismo religioso aldeão ou paroquial, que, de tempos a tempos, se vai manifestando por este país fora. Assim sendo, para mim, as aparições de Nossa Senhora aos três pastorinhos são comparáveis às lágrimas das santas que certos indivíduos colocam à entrada de suas casas. Ou seja, são manifestações típicas de um país pouco desenvolvido como o nosso. Não querendo parecer exagerado ou possuidor de ideologias que, manifestamente, não possuo, diria que o Iluminista Voltaire não deixa de ter uma certa razão quando afirma que os mitos são invenções sem qualquer sentido. É certo, no entanto, que um outro autor, Giambattista Vico dá uma outra importância aos mitos, nomeadamente, uma importância fulcral no que se refere à fundação das sociedades humanas.

Se os mitos e as supostas «aparições» de santos têm uma forte carga emocional no seio de uma população que é maioritariamente ignorante, não se pode deixar de pensar que a racionalidade de um Voltaire, no caso particular da aparição da Nossa Senhora de Fátima, não faz grande sentido. Melhor: num país extremamente atrasado no que se refere à cultura e à educação, é difícil que um pensador, cuja principal premissa é o racionalismo, consiga impor um pouco de lucidez àquilo a que se costuma apelidar de unanimidade. Até porque a clareza de pensamento dos racionalistas franceses do século XVIII descambou numa autêntica tragédia de princípios e de valores. Mesmo assim, não se pode deixar de tentar perceber o fenómeno que se gerou em torno dos três pastorinhos em geral e da irmã Lúcia em particular.

Assim, não desvalorizando o papel que a religião e a fé têm neste país, diria que o facto de dois canais generalistas e um canal do Estado terem transmitido a trasladação do corpo da irmã Lúcia para Fátima só pode ser sinal de um atraso civilizacional em relação a outros países. Por exemplo, é costume dizer-se por aqui que os americanos são demasiado apegados à religião, que todos os valores americanos derivam da expressão in God we trust. No entanto, quando se trata de demonstrar quem é que deixa de viver para assistir à transmissão em directo da trasladação de um corpo, recorremos a nós mesmos, isto é, a Portugal. Com efeito, Portugal, o país onde todas as liberdades parecem conquistadas, é, ao mesmo tempo, um país apegado a algumas tradições do Estado Novo. Fátima, ao prender as mentes paroquianas nacionais numa espécie de cativeiro miraculoso, é exemplo comprovativo do facto de os portugueses, em trinta anos, pouco terem feito para conquistar liberdades que deveriam ter sido conquistadas. É quase inadmissível que um canal do Estado passe uma tarde a transmitir a trasladação de um corpo, ao que parece, santo. Portanto, não querendo parecer um daqueles pensadores franceses que queriam fazer História a partir do zero, salientaria que a religião, apesar de ser, necessariamente, conservada enquanto factor de coesão social, deveria ser, de igual modo,vista como algo que não deveria mobilizar as nossas vidas de cidadãos curiosos e sedentos de conhecimento. A menos que queiramos voltar aos desejosos tempos da Idade Média, em que se acreditava em mortos-vivos e em outras coisas não menos surreais.

[Paulo Ferreira]

sábado, fevereiro 18, 2006

A casa que cai



Normalmente, não há casa que caia que não faça desmoronar os sentimentos da populaça. Nos telejornais, por exemplo, não raros sãos os casos de lágrimas incontidas que se deixam mostrar, de cada vez que uma casa se desmonta, tijolo por tijolo. Mesmo o célebre caso da explosão de dois prédios na ilha de Tróia mostrou que a populaça sofre imenso quando a casa vai abaixo. O enxame de gente que se amontoava na cidade de Setúbal para visionar a queda de dois prédios comprova isso mesmo. Diga-se, aliás, que, no caso de Tróia, até o senhor primeiro-ministro parecia fazer um olhar sofrido no momento da explosão. Isto talvez se explique pelo sentimento humano de amor pela destruição ou, numa perspectiva mais realista, pelo amor do português a tudo o que tenha custado suor e horas de trabalho.

A expressão «Até a barraca abana», tornada célebre por um actor que, no passado, fazia o papel de «Excelência» num programinha de Marina Mota, pode ser vista como uma espécie de comprovativo para aquilo a que se pode classificar de sentimento unânime de amor por tudo aquilo que mete trabalho e paciência ao barulho. As barracas dos ciganos são de uma qualidade que roça a quase total desumanidade. As habitações de alguns velhotes de aldeias são desprovidas de condições de higiene básicas. Porém, quando se trata de mudar de modo de vida, mesmo que essa mudança implique uma melhoria substancial, até a barraca abana. Porquê? Porque, mesmo que um indivíduo viva na mais nojenta das barracas, a verdade é que a casa que o viu nascer é a sua casa, o seu lar. Palheiro, barraca, adega, ou mansão, neste caso, é tudo a mesma coisa. Quem mora num local durante muitos anos não consegue afastar-se desse mesmo local facilmente.

Este sentimento de doce lar alastra-se aos vizinhos, como se de um vírus se tratasse. Assim, quando uma grande empresa imobiliária se disponibiliza para construir um casino em cima de casas velhas e degradadas, oferecendo aos moradores dessas casas velhas dinheiro ou novas habitações, o caso ganha contornos de tragédia. Seja bruxedo ou apenas intervenção do diabo, não há vizinho que não se prontifique a dar cabo do canastro dos «porcos capitalistas que, se um gajo não for a ter cuidado, ainda nos compram as filhas». Nestes casos de ajuda popular, a gritaria é enorme e a presença de jornalistas no terreno não ajuda em nada. «Então, a sua casa de toda a vida vai mesmo cair?», perguntava um jornalista um dia destes na televisão. Em resposta, o jornalista obteve da dona Maria da Conceição um pequeno suspiro e um desmaio, como se esse desmaio fosse uma metáfora da casa que vai cair. Ao verem a senhora desmaiar, os vizinhos vieram todos ajudá-la. E gritavam todos, sem excepção, frases de honra, tais como «Portugal é uma vergonha!», «A casa cai mas nós vamos com ela!», «O chouriço é bom mas carne de borrego é melhor!». Enfim, quando se trata de fazer cair a casa, o melhor é chamar o Evaristo, para ele vir cá abaixo ver isto.


[Paulo Ferreira]

O povo escolhido

Nevara no nosso país. Para mais, ao que parece, um português ganhou o primeiro prémio do concurso Euromilhões. Como vêem, a sorte de Portugal está a mudar desde que escolhemos novo governo.

[João Carlos Silva]

O estado das coisas



[João Carlos Silva]

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Violências



A propósito de uma notícia do DN sobre o aumento da violência doméstica em Portugal no ano de 2005, lembro-me de um senhor de província que batia na sua esposa por antecipação. Passo a explicar: o senhor, sempre perspicaz, batia na sua mulher antes que esta pudesse ter pensamentos. Ou seja, caso a pobre mulher quisesse ponderar sobre a hipótese de vir a pensar, o marido empregava-lhe um valente murro no lombo. Porquê? Segundo António Manuel, autor deste modo de actuar violentamente absurdo, a mulher é um bicho perigoso que, se não for domado, arrisca-se a enfiar um nobre par de «cornos» no marido. É como na Grécia, apenas com a diferença de personagens como Penélope não terem direito a se divorciarem por justa causa.

António Manuel, mais conhecido por «Nega», sempre foi assaz original no seu modo de pensar. Talvez se possa considerar este homem um pertencente da classe das mentes pragmáticas. Talvez se possa considerar este homem um grande bronco. Não sei. O certo é que a pobre da Cidália, de cada vez que suspirava um pouco mais alto, via-se sujeita a ficar com um olho negro. Já os filhos de António Manuel não corriam o risco de sofrer qualquer tipo de caução física, já que o perigo de adultério não perpassa da mulher para a criançada. Mesmo assim, sabe-se que o «Neguinha» mais novo já sentiu a arte babilónica de fazer leis nos ossos. Um dia, quando renegou o clube do pai em frente aos amigos deste, a criança, esperta, ganhou um valente estalo nos dentes como prémio. Acrescente-se que António Manuel é do Sporting. Pelo menos é a essa conclusão a que chego após muito estudar a tatuagem que o homem empunha no braço. «Sporting 3 ; Benfica 0», é o que se desenrola pelos braços de «Nega».

Pelo que atrás escrevi, é fácil perceber-se que a situação de António Manuel e de Cidália muito me diverte. Pela situação caricatural, é claro. Todavia, o aumento de casos de violência doméstica em Portugal não me deixa de perturbar. Partindo de uma premissa um tanto ou quanto politicamente correcta, dir-se-ia que a violência não é solução para nada. Muito menos para o esclarecimento de querelas conjugais. Bem sei que, por vezes, a violência serve como arma masculina de submissão do sexo forte. Isto é, à semelhança de António Manuel, muitos são os homens que batem nas suas mulheres para as dominar. Arriscando uma chalaça, diria que estamos perante casos de «amor forçado». Mas é triste que, num país que se pensa desenvolvido, continuem a surgir frequentes casos de dominação conjugal pela força. É, de igual modo, triste que se continuem a procurar respostas absurdas para casos sérios. Antes vale parodiar com os abstrusos casos da facada matinal do que dizer, por exemplo, como Elza Pais, que a violência é o resultado do "enraizamento sócio-cultural da desigualdade de género".

[Paulo Ferreira]

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

A burning ring of fire

Amanhã estreia em Portugal este (provável) grande filme. Um excelente actor e uma lenda na mesma pessoa.



[João Carlos Silva]

As verdades

Quase toda a gente, pelo menos uma vez na vida, já se deparou com alguém que, devido ao seu carácter impulsivo, tentou dizer todas as verdades que têm que ser ditas. Pois bem, eu sou um desses indivíduos que, devido a algumas intempéries da vida, já se deparou com a pessoa de todas as verdades. Confesso que foi uma esperiência perturbadora.

Quem se depara com a pessoa de todas as verdades, tem que se preparar para perceber que os lexemas «mas» e «pois» são da maior utilidade comunicacional. Repare-se que a pessoa de todas as verdades, na sua zanga emotiva, não vai dar tempo para que o seu interlocutor respire. Portanto, quando se ouvir uma hipotética mulher animalesca a gritar um bestial «Digo-te já!», o melhor é tirar todos os «pois» e «mas» da cartola porque com a pessoa de todas as verdades não dá para conversar. «Digo-te já que não tenho papas na língua!», frase habitual em pessoas que gostam de dizer muitas verdades. «Cala-te boca!», é uma outra grande expressão, própria de quem muitas verdades diz. «Eu bem te falava agora, mas....cala-te boca!». Vê-se logo que quem ordena à sua própria boca para que se cale não pode jogar à sueca com quarenta cartas. Ainda se fosse um simples «Cala-te cavidade ou abertura pela qual o homem e outros animais ingerem os alimentos!», que demonstra menos impulsividade. Mas não. «Cala-te boca!, assim, sem mais nem menos.

Assim, o certo é que não dá para ter uma conversa com quem tem por sonho dizer todas as verdades que têm que ser ditas a alguém. Pode-se sorrir, gesticular, bocejar, mas não se pode conversar, ou falar. É que o acto de dizer todas as verdades assemelha-se, em certo sentido, a um canto a solo, a uma monódia trágica. Por outro lado, por vezes, a pessoa de todas as verdades pode necessitar de certas introduções dos seus interlocutores. É daí que vem o «mas», que, introduzindo a fala do indivíduo revoltado, ajuda a um bom «Digo-te já tudo o que és!».



Um grande homem de todas as verdades é o excelso Valentim Loureiro. Para este senhor, não há nada nem ninguém que o possa silenciar. A ele ninguém cala e o resto é conversa. E o doutor Marques Mendes que se cuide porque o povo de Gondomar está muito aborrecido com ele. Perante isto, será absurdo que alguém no seu perfeito juízo tente dizer a Valentim que apontar o dedo é um acto muito feio. Depois, vem a nobre Fátima Felgueiras que, por sinal, é de Felgueiras. Esta, ao contrário do mamarracho de Gondomar, não se pode considerar uma mulher de todas as verdades. Bem sei que ela bem promete, mas, quando chega a hora da explosão (leia-se, a hora do «Digo-te ja!») ela cala-se. Promete, promete, mas não explode. Estamos, portanto, perante dois casos provenientes da mesma colheita, mas diferentes no modo de actuação.

[Paulo Ferreira]

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Reminiscência

Já os Arcade Fire cantam:

Everytime you close your eyes lies, lies!

[Paulo Ferreira]

A aldeia II

A aldeia tem muitas coisas boas. Por exemplo, o campo. No campo, é possível ver-se uma vaca a comer erva, ou palha, no caso de um burro. Coisa linda, não é? Pois. É verdade que também numa qualquer cidade se podem encontrar muitos burros enfardadores de palha ou muitas vacas bucólicas. Mas nada como na aldeia. Na aldeia tudo é mais bonito, tudo é mais natural, tudo é mais mortífero. Na aldeia tudo é bonito, mas, talvez por isso mesmo, tudo enjoa, tudo aborrece, tudo agonia. No entanto, para que não se pense que só me queixo da aldeia e do modo de vida rural, passo a descrever certos programas alternativos, de modo a que se possam passar umas boas horas ou dias, no caso dos mais corajosos, enfiado num lugarejo perdido nos recantos deste Portugal. Então, seguindo um conjunto de regras que para mim têm alguma pertinência, aqui ficam algumas das actividades dedicadas ao indivíduo comum (leia-se, indivíduo com fobia de aldeias) :

- Assistir ao Praça da Alegria. Bom programa, especialmente quando nenhum habitante da aldeia tiver conhecimento da existência da televisão por cabo. A propósito deste grande programa, diria apenas que aquele pessoal da RTP 1 é danado para a brincadeira, principalmente aquele senhor prior que lá vai tocar umas guitarradas para o pessoal;

- Rever vídeos pornográficos antigos. A indústria pornográfica dos anos 80 foi profícua no lançamento de grandes vedetas mundias, vedetas essas que se fartaram de encantar famílias inteiras. Na aldeia, então, com o frio que faz, nada como assistir a um bom penteadinho caprichado a assistir as dores musculares do nobre Rocco. Aquecer a pulso, para que se saiba;

- Falar com os habitantes da aldeia. Certamente, existirão muitos cidadãos com o nome de Barrabel e de Matreco a quererem servir de guia a todos e mais alguns. Jogar à sueca, à malha, ao tremoço e ao pontapé nas canelas é do melhor que se pode encontrar nas aldeias. E, com guias de roteiro, a coisa só pode melhorar. Cachaporra com eles, diria o Margaça se aqui estivesse, é claro;

- Ler. Actividade indispensável para quem vai para uma aldeia com a disposição de se divertir. Leia muito, caro turista. A aldeia, consumida em grandes doses, pode matar. Leia-se, nem que seja um Alves Redol suave, mas leia-se;

- Falar com a família. Em doses moderadas, porque a família da aldeia é muito curiosa. Uma frase a que se pode recorrer com frequência é a seguinte: «Ai tia, aquilo lá pela cidade é uma confusão. A gente tem de falar estrangeiro e tudo para falar com aquele povo maluco. Não queira visitar-me lá.».

Enfim, poderia ficar aqui a noite inteira a dar dicas ao cidadão urbano que, porventura, deseje visitar o mundo rural. Porém, nestas coisas de viver, o melhor é que cada um fale por si. Até porque há malucos para tudo e eu, que acabei de visitar uma aldeia, não sou ninguém para falar.

[Paulo Ferreira]

Ao de leve

Durante a infância, era comum o desentendimento com amigos da mesma idade. Sempre vinha uma mãe repreender uma das crianças, seu filho, que dizia: «mas mãe, só lhe dei uma ao de leve». Era expressão que toda a gente dizia, sem noção do sentido da frase. Mas ainda hoje reafirmo, em toda a sua flagrante mas bela incorrecção: ao de leve.

[João Carlos Silva]

A aldeia

Para quem sofre de perturbações causadas pelo stress urbano, passar um ou dois dias numa recatada moradia aldeã pode ser uma experiência terrível. É certo que existem poucas coisas mais pacificadoras que o silêncio total que nos é oferecido pelas aldeias. É certo que as pastagens e os campos são coisas que conseguem deixar um indivíduo entregue à contemplação durante largos períodos de tempo. Porém, para quem está habituado a acordar todos os dias pela madrugada e a ingerir doses malucas de cafeína, acordar por volta do meio-dia ao som de sinos de uma igreja, ou, mais simplesmente, acordar com as vozes de familiares saudosos de verem o desaparecido citadino, é, no mínimo, desagradável. Depois, para além da questão do modo de acordar na aldeia, vem uma outra questão mais complicada, que se resume ao seguinte: o que é que se faz numa aldeia, sem computador, rádio, ou qualquer outro tipo de coisa que ultrapasse o livrinho do costume? Lê-se. Mas, lê-se durante quanto tempo? Vinte e quatro horas? Não sou o Abelard nem a aldeia da família é Paris.

Na aldeia não há nada que se possa fazer. Nada. Especialmente ao domingo, que é um dia universalmente enfadonho. No máximo, na aldeia descansa-se. Mas descansa-se de quê? Dos vícios? Vícios são vícios e têm que ser alimentados. Portanto, o habitante de cidade que se imagine numa aldeia desprovida de cafés, computadores, livrarias e poluição, não consegue fazer mais do que imaginar. Porquê? Porque a aldeia é um sofrimento, uma agonia, um grande buraco, que, a qualquer momento, pode engolir a espécie.

[Paulo Ferreira]

Transgressão

Juntaram-se nesse dia para tentar uma descoberta. Sem amor nem amizade. Procuravam apenas conhecer outra pele. Até que se puseram frente a frente. Nesse momento, esqueceram-se da pele enquanto tal. Aprenderam os nomes um do outro. A pele ganhou nome próprio, como se não houvesse igual. Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha (Gn 2:25).

[João Carlos Silva]

A introversão dos feriados

Dias feriados são verdadeiros abismos de almas. Mais do que isso, são dias perdidos. Duas coisas escoam como água nos feriados: o tempo e a arrogância. Não deixa de ser triste que um homem, ao passear pela cidade em feriados e domingos, sinta a ridícula vontade de abraçar os transeuntes. Mesmo sendo um homem pouco dado a manifestações amorosas. Mas este sentimento explicar-se-á, talvez, pelo simples facto de não conseguir encontrar uma única pessoa na rua, nos dias feriados, para poder fazer isso.

[João Carlos Silva]

domingo, fevereiro 12, 2006

Musas


Chloë Sevigny

[João Carlos Silva]

sábado, fevereiro 11, 2006

Leitura recomendada

«Não se pode sair de casa», no Insurgente.

[Paulo Ferreira]

Previsões



Se nunca acreditei na existência de Messias, sempre acreditei na existência de pessoas que, pela sua perspicácia, cultura e inteligência, conseguem prever aquilo que o futuro traz. Um exemplo bastante concreto do que estou a afirmar é Edmund Burke, um homem que, sensatamente, conseguiu prever aquilo que se passaria no tenebroso mundo da Revolução Francesa. Outros indivíduos tentam prever o futuro do mundo, mas nenhum o conseguiu fazer da mesma maneira que Burke conseguiu. No mundo de hoje, no mundo em que as notícias se sucedem a velocidade quase devastadora, existem pessoas que tentam prever os sinais do tempo, como se esses sinais fossem prenúncios do Apocalipse. Uma boa personagem dotada de espírito profético é Boaventura de Sousa Santos, uma espécie de sociólogo alimentado por pozinhos de previsão política. Recordo-me especialmente do nobre Boaventura quando penso num artigo em que o sociólogo demonstrava toda a sua preocupação com a ascensão de «um espectro negro conservador» no mundo ocidental (isto passou-se há cerca de três anos atrás). Infelizmente, ao contrário do que o senhor julgava, o espectro negro conservador não apareceu e nem sequer tomou conta do poder. Ora, mesmo no seio da política portuguesa, temos figuras que conseguem prever o final dos mundos através dos seus pensamentos geniais. Veja-se o caso do bom Francisco Louçã e perceba-se que, por vezes, a previsão política não deixa de se associar a certas lucubrações internas, que dizem respeito à esfera do sonho ou do desejo. Portanto, quando se pensa em imaginação e previsão, o melhor que se tem a fazer para não se cair no azar de dizer asneira é ler-se muito e falar-se pouco.

Em The Roads to Modernity, genial livro de Gertrude Himmelfarb, encontramos precisamente algumas referências à referida perspicácia de Burke. Passo a citar: Even more remarkable is Burke’s anticipation of the more momentous events that were to come. Regicide, war and terror are all prefigured in the Reflections, as if they had already happened. Burke took the measure of the Revolution at the outset. It was then, when the Paris mob marched to Versailles and seized the king, that «the most important of all revolutions» took place, «a revolution in sentiments, manners, and moral opinions». This moral revolution was later to become the rationale and dynamic of the Terror, an event that Burke dramatically foretold.

[Paulo Ferreira]

Eu é que tinha razão

Hoje, Ana Sá Lopes parece ter saído de um prolongado cativeiro de reflexão para, de forma inenarrável mas habitual, afirmar que a culpa da «polémica dos cartoons» é d'o Bush.

[João Carlos Silva]

Sobre as liberdades

Sou uma pessoa indecisa. Mais ainda, considero-me um homem fraco quando chega a altura de decidir rápido. Caso fosse Presidente dos EUA, era bem provável que o Comunismo tivesse prevalecido. Caso fosse Primeiro-Ministro, confiaria na capacidade de cada um decidir por si, o que é o primeiro passo para a desgraça (especialmente em Portugal). Mas o que eu quero dizer com isto é que, apesar de achar que a indecisão, a necessidade de reflexão prolongada, seja negativa num cargo que se quer forte e determinado, a indecisão é também sintoma de pensamento. Não é por acaso que as figuras mais «decididas» são sempre os fundamentalistas, os homens de fé inquestionável e inquestionada. Acerca da Liberdade, a indecisão é, também ela, uma virtude.

Passo a explicar. Sou um liberal. Mas a Liberdade não é uma condição natural. Os homens «tornam-se» livres. Melhor ainda, «fazem-se» livres. Um homem não nasce livre. Não se deve confundir a liberdade de se poder acelerar um jipe com música asiática em pleno deserto enquanto se atira à toa contra a fauna que deambula descansada pela região com a liberdade de se poder atravessar uma cidade cheia de gente sabendo que todo o homem que nos molestar será (ou seria, com uma Justiça que funcionasse na perfeição) punido por isso. Ou seja, a Liberdade não é um conceito fácil. Logo, sou um «liberal com problemas de consciência» - porque sei que essa Liberdade tem um custo, tem de ser defendida de forma agressiva, o que surge como algo paradoxal.

Não acredito no «centro». Não acredito em homens «abertos a todas as crenças». Alguém que concorda, por exemplo, com as linhas do PCP assim como com as do PSD não pode ser um homem sério. É apenas alguém que tem medo de, se se juntar a um dos lados, ser «crucificado» pelo outro lado. A isto não se chama indecisão, mas sim cobardia. Assim como temos Presidentes que passam o tempo «expressando preocupação», também há homens que acham que a condenação de um assassino em série (a prisão perpétua é o verdadeiro castigo, a «punição empenhada») deve ser um caso para reflexão e «apuração sociológica das causas». Não, a indecisão é outra coisa.

Por isso, é importante realçar algo. É preciso realçar que o que está em causa na discussão dos cartoons que o jornal dinamarquês publicou, e das consequências que tal motivou, não é se os muçulmanos que se têm «manifestado» (e atenção que quem se manifesta de forma violenta, partindo tudo o que vir à sua frente, não é um terrorista de Maomé, mas sim mais um pobre diabo, manipulável e com pouca inteligência e sentido de respeito, à imagem dos que sempre tivemos na nossa tão educadinha Europa) o fazem legitimamente. Porque o fazem - o objectivo do cartoon era a provocação, a ofensa, desafiar os muçulmanos para ver se agitavam esse mundo, se chegava a este ponto, e chegou. É positivo, mostra que as opiniões fortes estão de boa saúde.

Não, o que está em causa nesta discussão é saber se a Lei de Talião (por sinal, uma lei semita, pagã, anterior às religiões que conhecemos hoje) realmente deve ser exigida ao mundo do Próximo Oriente. Porque todos nós, ocidentais, sofremos de algo que nos tolda a visão, uma «síndrome da distância». Uma inexplicável tendência para exigir a um homem do outro lado do Mundo que aceite as liberdades políticas (e, porventura, a democracia) da mesma forma que nós as aceitámos. Tal como queremos julgar, negativamente, a maioria do Oeste americano que acredita no direito de ter uma arma para se defender a si e à sua família - numa Europa em que há muitas gerações não conhecemos espaços livres, desertos a perder de vista, sem segurança, não se pode compreender o que sente um «texano». Não é possível.

O que é possível é considerar o que aconteceu junto das embaixadas e empresas dinamarquesas da seguinte forma: a liberdade de expressão implica que se esperem reacções negativas. Não se pode esperar que um homem seja ofendido directamente e aceite a ofensa. Ao ofender alguém, espera-se resposta. E os muçulmanos, quer queiramos quer não, foram «duramente» ofendidos - o que é bem grave num sistema moral e ético rígido como é o do Corão e da Sunna -, mesmo que Maomé não seja uma divindade. O que está em causa discutir agora é se aqueles homens, instigados por altas personalidades no mundo anti-cristão e anti-judeu, têm o direito de responder violentamente às ofensas, afectando assim de forma grave a liberdade de expressão (mesmo a levada ao extremo) de cada um de nós. Porque motivos têm. No entanto, perante as reacções, e perante o que acreditamos ser a melhor via de coexistência (a Liberdade, o direito à opinião), «pedir desculpa» é o pior que se pode fazer. Pode-se lamentar a natureza da opinião (mesmo que isso seja invalidar toda a razão de ser de um cartoon), mas nunca pedir desculpa por tê-la dado. Isso é abdicar das quase únicas liberdades que já, há muito, temos garantidas.


[João Carlos Silva]

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Gramática da 1ª pessoa

It´s only me
respondi à empregada de café
quando me quis sentar

Sou só eu
mais ninguém
só eu aqui descentrada do mundo
neurótica e distópica
em curtos arremedos grosseiros
e vulgares

It´s only me
a pedir um chá só ou só um chá
que a sintaxe de nós
permite estas permutas subtis
a inglesa já não
que just a tea pode bem ser
mas não a lonely tea
Sou só eu lonely me
só quero um chá
mais nada
e mais ninguém


- Ana Luísa Amaral, Poesia Reunida / 1900-2005

[Paulo Ferreira]

O palhaço triste

A auto-ironia encontra-se profundamente enraizada nos Judeus; contribuiu para a sua sobrevivência. Quando é a cabeça que está em jogo deve-se optar pelo papel cómico em detrimento do trágico. Os bens e a reputação podem ser recuperados novamente, a cabeça, não.

- Ernst Jünger, O Problema de Aladino

[João Carlos Silva]

O caminhante solitário



Há um ano atrás, quando li o brilhante Intellectuals de Paul Johnson, fiquei fascinado com os retratos que o historiador britânico fazia sobre algumas ilustres personagens, entre as quais se destacava a proeminente figura de Jean-Jacques Rousseau. Agora, depois de ler Os Devaneios do Caminhante Solitário de Rousseau, mais fascinado fico. Pela negativa. Se Paul Johnson descrevia Rousseau como um homem sem escrúpulos, falso, hipócrita, agora, depois de ler a obra póstuma do «pensador» francês, fico com a sensação de que o nobre Jean-Jacques terá sido, efectivamente, um dos maiores fingidores de sentimentos que alguma vez terá existido.

Ninguém no seu perfeito juízo abandona os seus filhos num orfanato, quando tem dinheiro para os criar. Mas Rousseau fê-lo. Abandonou os filhos num orfanato. Mais: Rousseau abandonou os filhos num orfanato e negou-o sempre, pelo menos até ao dia em que decidiu confirmar a verdade nos seus escritos. Depois, Rousseau, pelo que leio, tinha uma capacidade inata para se vitimizar perante o mundo. Aqui fica um exemplo: «Eis-me sozinho na terra, sem irmão, parente próximo, amigo, ou companhia a não ser eu próprio. O mais sociável e o mais afectuoso dos homens foi proscrito da sociedade por um acordo unânime.» Vê-se, pelo excerto transcrito, que, realmente, Rousseau, o caminhante solitário, era uma vítima deste inóspito mundo. Como todos nós, aliás.

Rousseau afirmava, não poucas vezes, que ele próprio devia ser das pessoas que menos mentia no mundo. Com efeito, ele era a verdade, a bondade do mundo. Por outro lado, o resto da sociedade representava o mal. Luta injusta, aquela que é feita por um indivíduo contra o resto da sociedade. Quando mentia, Rousseau dizia que era para evitar males maiores, como o bom Ulisses da Odisseia. Porém, não nos esqueçamos de que até Ulisses se fingiu de louco para não combater em Tróia ao lado dos seus companheiros. Rousseau mentia como poucos e, como se isso não bastasse, fingia pertencer a um mundo santo que, de facto, não era nem nunca poderia ser o seu.

Os Devaneios do Caminhante Solitário, não sendo um livro de excepção, como nenhum livro de Jean-Jacques em geral, é um livro que permite compreender muito daquilo que foi o homem do contrato social no seu tempo. Permite que se compreenda que, muitas vezes, a mentira serve como apologia da verdade. E é esse o Rousseau que nos chega hoje através dos livros, o mentiroso apologista da verdade.

[Paulo Ferreira]

Autobiógrafo

Penso que é possível gostar de Vasco Pulido Valente por duas «vias»: pelo estilo de escrita em obras e estudos sobre História, e pelo estilo aplicado às crónicas. Mas há outra. Há um outro registo menos desenvolvido (publicamente) que sempre me impressionou - a escrita autobiográfica.
Vasco Pulido Valente tem, realmente, alguns dos melhores textos autobiográficos que já li. Nem Rousseau se confessa desta forma. O estilo «habitual» é um pouco contido neste tipo de textos e surgem as verdadeiras «histórias», os textos realmente intemporais. Por exemplo, em Retratos e Auto-retratos: «Eu não comecei como Paulo Portas, aos dezasseis anos, por acusar de traição o Presidente da República; nem como Miguel Esteves Cardoso, aos dezoito, por aterrar a pátria com a minha sabedoria musical e demolir Namora. Os meus princípios foram modestos. (...) O meu primeiro artigo era sobre o teatro português (assunto que, aliás, nunca me interessara) e tinha a distinção de plagiar quase letra a letra um artigo de Eça, publicado cem anos antes na Campanha Alegre. Sobre alguma coisa eu havia de escrever e de algum sítio eu havia de copiar. O dr. Mário Soares, com aquela delicadeza que mais tarde o tornaria célebre, achincalhou-lhe logo paternalmente em público. Foi assim que eu comecei. «O que te falta é jeito», disse ele, em conclusão. Aviso benévolo».
Mantenho a minha modesta opinião, que já tenho há alguns anos. A de que Vasco Pulido Valente tem alguns dos melhores textos autobiográficos dos tempos que correm.

[João Carlos Silva]

O estado das coisas



[João Carlos Silva]

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Medo dos yuppies

Talvez pelo meu lastimável estado de pobreza, o que me acontece todos os dias nas passadeiras parece equivaler aos meus piores pesadelos: ser atropelado por um BMW preto topo de gama. Felizmente, na realidade tenho conseguido saltar para a calçada a tempo.

[João Carlos Silva]

O mito

O mito não é uma pré-história; é uma realidade intemporal, que se repete na história. O facto de o nosso século encontrar de novo sentido no mito, conta-se entre os bons prenúncios. Também hoje o ser humano é arrastado por vigorosas potências até ao alto mar, até ao fundo do deserto e do seu mundo de máscaras. A viagem perderá o seu carácter ameaçador, se ele se lembrar da sua força divina.

- Ernst Jünger, O Passo da Floresta

[Paulo Ferreira]

O Estado das Coisas


Saladino

[Paulo Ferreira]

As modas

Como nunca ninguém me pergunta nada e como eu gosto muito de escrever sobre assuntos que não interessam a ninguém, aqui fica mais um texto, desta vez sobre as modas e modinhas que, de tempos a tempos, inundam as mentalidades colectivas. Ou melhor, sobre quem as faz.

Assim, começo por dizer que nunca fui muito de seguir a moda. Não é que eu tenha algo contra quem gosta de seguir as modinhas que se vão mostrando, de tempos a tempos, mas nunca fui de as seguir. A verdade é que a expressão «estar na moda» me irrita. Irrita-me tanto como aquelas pessoas que se julgam vividas, mas que nunca viveram nada que ultrapasse o haxixe juvenil ou as histórias de Jack Kerouac. Se algumas pessoas se julgam vividas, maduras, ou o que quer que seja, só por frequentarem discotecas e o ambiente social que as rodeia, imagine-se o que significará vivido para alguém que passa a sua vida a matar crocodilos ao murro no Amazonas. Nada. Ou muito. Depende da perspectiva e do grau de importância que as coisas têm. Pois bem, não sei ao certo identificar as razões que me levam a afirmar isto, no entanto, parece-me que as modas estão inteiramente relacionadas com o abstracto convencimento da maturidade. Isto é, parece-me que o acto de seguir a moda, tanto no vestuário como em coisas mais simples como a literatura, representa a afirmação social de pessoas que nada de útil fizeram na vida, mas que, devido a razões que desconheço, se julgam muito experimentadas. Por exemplo, quantas não serão as pessoas extremamente vividas que se saem com um «fizestes» no momento de abrir a boca? Poucas? Duvido. Além disso, quem é que segue as modas? Os ricos que são ricos e que, por conseguinte, se podem dar ao luxo de comprar tudo o que querem, ou as pessoas pobres que, como não têm dinheiro suficiente para pensarem naquilo que mais lhes convém, tentam imitar os padrões sociais dos ricos com modinhas mais em conta? Cá para mim, as modas não estão inteiramente dependentes do estatuto social dos indivíduos. Não. Estão, isso sim, relacionadas com o grau de formação e de educação das pessoas. É por isso que defendo que os grandes seguidores das modas são os novos-ricos, os que são ricos por fora e pobres por dentro. São esses os que são capazes de gastar seiscentos euros num casaco de pele de galinha absolutamente ridículo, só por a pele de galinha estar na moda. É certo que este é um exemplo um tanto ou quanto inverosímil, mas julgo que deu para passar a ideia.

As modas são modas porque estão sempre a aparecer novas modas, dizem alguns. Outros afirmam que as modas são modas porque nunca passam de moda e, então, cada um pode fazer a sua própria moda. Quem é que tem razão? Se este blogue fosse o oráculo de Delfos e eu uma representação de Apolo, diria que é verdade que as modas são modas porque estão sempre a aparecer novas modas. Porém, diria também que é por estarem sempre a aparecer novas modas que as pessoas dotadas de mais informação cultural (e a cultura não se restringe só aos livros) não seguem as modas. Admito que um indivíduo com muito dinheiro nos bolsos possa vestir bem ou comprar roupas caras. Agora, é-me completamente absurda a ideia de que alguém siga as modas que se vão alternando sucessivamente só porque é possuidor de uma grande margem de manobra a nível financeiro. Exemplificando, quem é que compra carros da moda? O novo-rico que vem com o dinheiro da França ou o rico que gosta de se deitar na cama a ler António Ramos Rosa? O novo-rico, até porque num BMW novinho fica sempre bem um sistema de som modernaço. Outro exemplo, quem é que faz uma vivenda género «será que as casas desta aldeia serão todas iguais?», o pobre, o rico, ou o novo-rico? A resposta reside neste último, que, por ser rico e ao mesmo tempo pobre, quer apagar a sua ignorância extrema com uma casa da moda. Acrescente-se ainda que são estes novos-ricos os indivíduos que se julgam muito vividos.

[Paulo Ferreira]

domingo, fevereiro 05, 2006

Ocidentais

A ler o post de Henrique Raposo. Alguns excertos:

«Bom, perante tanto pedido de desculpa a percorrer o "mundo livre" (Kofin Annan incluído), começo a pensar que ainda vão obrigar Salman Rushdie a pedir desculpa pela sua liberdade expressa em “Versículos Satânicos”. Em 1989, quando um senhor de turbante lançou a Fatwa sobre Rushdie, o Ocidente inteiro uniu-se contra essa afronta. Hoje, passados 17 anos, tudo mudou. Hoje, haveria ambiguidade em relação a Rushdie. Como houve ambiguidade em relação ao assassínio de Van Gogh no ano passado. Como há ambiguidade e “boa educação” politicamente correcta neste caso dos cartoons.

(...) 9/11? A culpa é da própria vítima: a América. Motins em França? A culpa é do estado francês. O Ocidental é sempre o culpado, mesmo quando é a vítima. Estamos a pedir desculpa pela nossa liberdade perante sociedades autoritárias que apenas dão voz a uma minoria de fanáticos. (...)
»

[João Carlos Silva]

sábado, fevereiro 04, 2006

Recomendação do dia


Munique. Spielberg mais complexo, e bastante mais político. Mas continua a ser um excelente realizador. Um óptimo filme, algumas boas interpretações. Luz e ritmo a condizer. Do ponto de vista de «cinema» (ao contrário do da «mensagem», embora não seja rígida mas sim reflectiva) parece-me uma pequena perfeição.

[João Carlos Silva]

Os hábitos numa frase

Porque será que um português diz que «comeu bem» quando comeu muito?

[João Carlos Silva]

Ironia bem argumentada

«O estudante pode entregar uma pesquisa que parece correcta (e está), mas que foi tirada e colada directamente da rede. Penso que este fenómeno não é nenhuma tragédia, porque copiar bem não é assim tão fácil e um estudante que sabe como fazer uma boa cópia tem direito a uma boa nota. Por outro lado, mesmo antes da Internet existir, os estudantes podiam copiar de livros da biblioteca, e não havia qualquer diferença (excepto o facto de envolver mais trabalho manual). No fim, um bom professor notará sempre quando um texto foi copiado sem discernimento e desconfiará sempre (repito que se o estudante copiou inteligentemente, merece parabéns).»

- Umberto Eco, , 3/2/2006

[João Carlos Silva]

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

At last

Após muito tempo, vi hoje a primeira referência (em blogues) a uma excelente série que anda perdida pelos canais portugueses.



[João Carlos Silva]

Abrupto

Por vezes gostava de ser muito lido neste blogue. Por vezes gostaria de fazer posts geniais, aprumadinhos como um menino rural em dia de missa. Por vezes tenho mesmo o inapelável desejo de fazer piadas (o que faço muito mal). Mas, para isso, teria de seguir o grande lugar-comum da blogosfera portuguesa, a «fórmula número um», o escadote para o sucesso: tentar criticar qualquer coisa no blogue de José Pacheco Pereira (excluo, claro, as polémicas com tema).
Infelizmente, não tenho grande apetência para fazer isso. Até porque o blogue Abrupto continua a ser um dos nossos blogues de eleição, precisamente porque é um cantinho pessoal de cultura, de alguém que já cá está há muito tempo.

E é, precisamente, por gostar do Abrupto que continuo a tê-lo na lista. Para mais, foi com os livros e artigos de Pacheco Pereira que despertei a minha noção de política e foi o seu blogue que me influenciou a entrar na blogosfera. Talvez Pacheco Pereira precise apenas de um pouco mais de maldade - de certeza que os comediantes falhados andavam todos na linha.

[João Carlos Silva]

Referências criativas


Leonard Cohen

It was deep into his fiery heart
he took the dust of Joan of Arc,
and then she clearly understood
if he was fire, oh then she must be wood.


(Joan Of Arc)

[João Carlos Silva]

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Amor louco

A ouvir Scorpions, ela abraçava-o até à última gota de paixão. Depois, dizia, como quem não quer a coisa: «i'm still loving you, meu amor!»
Ele, que era rapaz de poucas falas mas de muito trabalho, roçava-se, meio aparvalhado.

[Paulo Ferreira]

Juventude

Não digam a ninguém, mas hoje vi o Jack Nice e o Bruce Fixe. Gingavam no metro com os seus casacos de ganga amaricados. Também não digam isto a ninguém, mas acho que esses dois são a juventude portuguesa. Já começo a ver sinais do homem novo português de que falava Cavaco Silva há uns anos.

[Paulo Ferreira]

Condecorar II

Julgo que Jorge Sampaio, antes de dar a vez a Cavaco Silva, deveria condecorar uma última instituição: a neve. Afinal, há quanto tempo já não nevava na capital? Cinquenta, cinquenta e um anos?

[Paulo Ferreira]

Condecorar

Eu, português como ninguém, sinto-me injustiçado. Vivo neste país, mesmo debaixo dos lençóis burocráticos, e não sou condecorado. Nem uma medalha. Nem um abraço de consolo. Que mundo injusto. Quando tiver dinheiro, emigro.

[Paulo Ferreira]

Marte

A única palavra de língua marciana escreve-se foneticamente da seguinte maneira:

ké-ré-ka-kó-kex.

Significa tudo aquilo que se quiser.

- Blaise Cendrars, Moravagine

[Paulo Ferreira]

A sueca

Welfare State, social-democracia, Saab, salmão fumado, Ikea. São muitas as coisas em que pensamos espontaneamente quando se fala da Suécia. Mas, quando se quer ser um pouco mais castiço, rapidamente se descobre algo de errado na nossa busca. Repare-se a definição que o dicionário tem para «sueca»: espécie de bisca em que cada parceiro joga com dez cartas e obriga a naipe. Ora, a não ser que um homem seja irremediavelmente português ou irremediavelmente inocente, a curiosidade que se tem ao procurar, no intervalo dos trabalhos, a palavra «sueca» num dicionário, é a curiosidade de saber o que se diz acerca das mulheres nascidas em Estocolmo ou, pelo menos, vá lá, com mais de um metro e oitenta de altura. Duvido que se procura o sentido de «sueca» no dicionário para surpreender os amigos ou colegas («eu sei definir o jogo da sueca e tu não sabes»). Até porque qualquer homem português que se preze (excluo da equação as mulheres, mais puras e menos dadas a jogos fúteis de enganar e tirar dinheiro a outros homens) sabe inevitavelmente o que é a «sueca», o jogo da sueca, até mesmo aqueles que passaram e passarão toda a vida a sonhar com o dia em que verão uma «sueca» de um metro e oitenta.

O meu caso é triste. Ou talvez não. Mas o facto de não saber jogar «sueca» como um homem, isto é, apostar alto, bater com o punho na mesa e lançar expressões eruditas juntamente com as cartas, faz de mim um marginal. Para ser franco, qualquer jogo que não tenha bispos ou peões para sacrificar torna-se-me um jogo muito chato, sem interesse.
Mas não se pense que os grandes peritos na matéria jogam à sueca por gosto. Nem mesmo pelo milenar espírito agónico que reina na alma de qualquer homenzarrão de taberna. Não, eles jogam à sueca por necessidade. Pela mais pura necessidade de escoar as expressões que estão presas na garganta (entupindo, muitas vezes, o discurso correcto, chegando ao ponto de não conseguirem falar português). Daquelas expressões que não se dizem em mais lado nenhum. Ora, não se pense que eu, por não saber jogar ao seu nível, fujo das zonas de jogo como o Diabo foge da cruz. Não, pelo contrário, se há coisa enriquecedora é ouvir a verborreia que acompanha os gestos.

Repare-se na extensa lista de frases, expressões ou conjugações existentes (escusado será dizer que só consigo expor uma infimíssima parte do Dicionário da Sueca):

- por exemplo, não se assustem quando um gordo disser, irado, a um bêbado: «Então?! Jogas a puta seca?!». É claro que o homem, concentrado no seu jogo, nem está a pensar em ofender o empenho físico e espiritual de uma mulher na sua profissão, digna como qualquer outra. O que ele quer dizer é que a rainha (ou a dama) foi jogada para a mesa, com grande risco de perder esses pontos;

- mais comum ainda é ouvir o ancião local do jogo a alertar o companheiro de equipa: «não te quero ver pôr a manilha seca». Esta expressão sempre me causou grande desconfiança. Porque é que se chamará manilha à carta sete? Procurando no dicionário, o mais frequente é ver a palavra definida como qualquer coisa perto de argola, pulseira ou bracelete. Talvez por isso todo o homem castiço se sinta inseguro por ver a manilha à solta na sua mesa. O mais comum é apressar-se a cobrir a manilha com um viril Ás, refreando os ânimos: «...da-se, que esta ficava»;

- depois, há que respeitar os jogadores. Mesmo quando estes, mesmo insultando os adversários (comummente «paneleiros»), insistem em proteger o colega de jogo da forma mais ternurenta: «Parceiro, joga que eu estou em cima de ti». Ou «Eu só jogo com o meu parceiro». Já para não falar daqueles menos discretos que insistem em olhar fixamente o colega e, quando ninguém vê, piscar-lhe o olho. Estas conversas e combinações são vagamente sexuais, sem dúvida. Freud pode ter escrito algo sobre isto, mas não sei onde. Portanto, sobre tudo isto, vou manter silêncio, por respeito aos jogadores. Até porque, cada vez mais, o mudar de parceiros para ver como é está a ficar na moda. Eu é que estou antiquado. Mas respeito;

- depois, há variações locais, regionais, individuais ou comunitárias das expressões da sueca. Quase todas sem grande explicação (aceito sugestões): «joga lá que já se faz cacimba»; «se a perna parte, é calo mole»; «galo sentado é bom negócio»; «joga lá rápido e não espetes o dedo no ar, que Deus está em todo o lado e ainda lhe pões o dedo no cu». Não há explicação certa.

Por isso, aconselho às pessoas que não têm grande jeito para as cartas (nem grande vontade de aprender), como eu, que se mantenham atentas. Em especial as que se querem candidatar a cargos públicos/políticos, mais solidárias com o país real. Porque, se não é nos cafés de bairro e nas mesas de sueca que encontram os melhores eleitores, os mais exigentes, então não sei onde será.



[João Carlos Silva]