quinta-feira, fevereiro 19, 2009

A crítica ao «american dream»



O sempre polémico Luís Miguel Oliveira, que se meteu recentemente na alhada de devastar o filme «do momento», Slumdog Millionaire, e ser publicamente crucificado por isso, veio agora - como outros críticos, aliás - bater no último filme de Sam Mendes, Revolutionary Road. Para explicar a «admiração fria» e «progressivamente desinteressada» que o filme lhe provoca, Luís Miguel Oliveira pergunta retoricamente e responde ele mesmo: «de onde vem o pouco entusiasmo? Diríamos que do facto de o "programa" de Sam Mendes não ir muito para além disto - uma boa caução competentemente ilustrada (o romance) e o brilhantismo dos actores tomado como "nec plus ultra"».

Ora bem, até aqui tudo bem, e uma crítica é sempre pessoal e subjectiva. Vejamos o filme e o seu suposto trunfo (de facto, até é): os actores. Leonardo DiCaprio e Kate Winslet. A dupla romântica do filme está brilhante. Winslet continua o seu percurso que amadurecimento artístico que a anda a elevar quase à perfeição dramática, podendo eu mesmo afirmar que ela está entre o reservado lote das minhas actrizes preferidas. DiCaprio, por sua vez, supera as expectativas: não tem o perfil esperado para a personagem, mas corresponde e supera a exigência do papel com uma energia quase sobre-humana (Scorsese fez do miúdo um verdadeiro actor). Por fim, destaque ainda para mais dois actores: Michael Shannon, Kathy Bates e Dylan Baker. Shannon porque, justamente nomeado para os Óscares, nos oferece uma composição psicológica e socialmente inadaptada capaz de rivalizar com os «grandes» de Hollywood. Bates porque, embora de forma caricaturada, cabe na perfeição na figura estereotipada da «boa vizinha», da senhora do lado dos mágicos (ou pouco mágicos, segundo Sam Mendes) subúrbios americanos. Dylan Baker o mesmo que para o estereótipo de Kathy Bates, mas neste caso em relação ao colega de trabalho de Frank/DiCaprio.

E aqui chega o outro elemento-chave da equipa que nos traz Revolutionary Road: Sam Mendes. O realizador britânico é um grande director de actores. Sem dúvida. Tem um currículo no teatro inglês e formação também na área, e os seus sets reflectem-no. Mas não só. Sam Mendes também é um dos melhores realizadores de Hollywood, se descontarmos a relativa «juventude» dos seus dez anos de cinema e o Óscar. Consegue uma ambiência de sombras, luz e planos que vai além da sua suposta «especialização» em arte dramática típica de teatro britânico e, obviamente, muito além da mera capacidade de direcção de actores.

Revolutionary Road consegue ser um filme muito bem filmado, com excelentes actores, que navega em redor da capacidade ou incapacidade de nos relacionarmos uns com os outros, e em redor de como se pode desistir de viver para sobreviver, neste caso para existir numa pacata vivência de subúrbio. Que é como se canta naquela música de Malvina Reynolds que dá tema a Weeds: «Little boxes on the hillside, Little boxes made of tickytacky / Little boxes on the hillside, little boxes all the same / There's a green one and a pink one and a blue one and a yellow one / And they're all made out of ticky tacky and they all look just the same». Aqui, no filme de Mendes, também há um despertar momentâneo desse sonho americano, ou pesadelo americano, em que tudo parece igual, e em que a perfeição da igualdade soa a mediocridade. Despertar esse que surge na figura de Kate Winslet mas que, lentamente, se encaminha para a tragédia, num momento alto digno das melhores tragédias gregas. Há aqui um encontro de American Beauty (realizado por Mendes em 1999) com Little Children (filme brilhante de Todd Field, de 2006), no qual, por acaso ou sem coincidência, também brilha Kate Winslet.

Ora, voltando à crítica de Luís Miguel Oliveira, é fácil ver que a única razão pela qual não dá um pouco mais de crédito a Revolutionary Road prende-se com a embirração que tem por Sam Mendes, que, segundo ele, anda «ainda à boleia do sucesso de Beleza Americana» a por isso continua a «ser sobrevalorizado». Claro que isto para mim é escandaloso, já que, muito ao contrário do crítico de cinema (e se calhar até de muitos mais, se me puser a procurar), acho Road to Perdition um dos filmes mais subvalorizados dos últimos dez anos (e que muito estimo, pessoalmente), que ganha apenas um Óscar, se não me engano, pela fotografia - aí sim, talvez ainda na ressaca do Óscar de Sam Mendes de 1999. Mas, tendo em conta alguma aversão dos críticos à mistura entre teatro e cinema, e a visível aversão de Oliveira a Sam Mendes lui-même, Revolutionary Road (como Road to Perdition) chega-me como um dos melhores filmes do ano, pelo menos bem acima do banal Benjamin Button do Fincher. Ainda que me faltem ver alguns candidatos ao Óscar, não me caía o Carmo e a Trindade se Sam Mendes levasse todos os Óscares para os quais foi nomeado.

P.S.- não tenho qualquer animosidade habitual ou generalizada para com o Luís Miguel Oliveira. Pelo contrário, concordo completamente com a sua escolha (o «Devia ganhar», e não o «Vai ganhar») para o Óscar de melhor actriz secundária: Marisa Tomei, que está absolutamente fantástica em The Wrestler.

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