terça-feira, janeiro 13, 2009

Nítido Nulo



À força de algum simplismo, poder-se-ia eleger como principal atractivo dos romances de Vergílio Ferreira um traço distintivo: a interrogação. A interrogação que Vergílio faz da vida e da morte, do sentir, da luta, da família, de Deus, do destino, do corpo. Muitas das suas questões rodeiam a importância do corpo, directa ou indirectamente. Porque o corpo é grande (senão a única) ligação do «Eu» à existência. Mas não há respostas. Só grandes interrogações. E Nítido Nulo é uma obra que as faz com grande vigor.

O escritor Vergílio Ferreira mistura-se aqui com o narrador omnipresente e com a personagem principal Vergílio Ferreira, tal como o tempo se mistura com o passado, o presente e momentos transversais, que se parecem repetir no ontem e no amanhã com diferentes reacções do «Outro». O tempo em que escreve o romance é 1969, logo o ambiente revolucionário, e a dúvida acerca desse ideal (socialista, comunista, anarquista ou utopista) impregnam as páginas de Nítido Nulo. O tempo de mudança anuncia-se, com algum sarcasmo à mistura: «Queimai os livros todos, porque a verdade ainda não foi escrita e dos novos ignorantes é o reino dos céus. Se vos disserem que há uma Lei - não! Perguntai-lhes quem é que fez a Lei e desobedecei, que dos desobedientes é a glória eterna».

É claro que esta «desobediência» acaba por ter múltiplas frentes. A primeira desobediência á de ordem política, de ordem material. Sendo o ano 1969, a referência à provecta idade de Salazar e à do sobrevivente regime não deixa grandes dúvidas, ainda que sob a forma de metáfora inespecífica: «O nosso chefe do Governo tem já cento e cinquenta anos. E uma idade bonita. Não, porém, muito avançada em relação ao avanço dos princípios que nos regem e têm já mais de quinhentos. (...) Uma rede de arame cruzava todo o país, arame ferrugento. Pelos intervalos passava a vida». Portugal estava decrépito, e Vergílio Ferreira sente os ventos de mudança no ar. Daí a referência aos rebeldes, que, conforme a reflexão do condenado Jorge (o Eu), oscilam entre as roupagens de revolucionários e de terroristas.

A outra desobediência é face a Deus, face à certeza de que alguém nos expia os pecados ou sequer que os vêm cobrar. Ridiculariza as referências: «Essa coisa de ressuscitar ao terceiro dia, mesmo que fosse ao terceiro do terceiro - palhaçadas, não. Morrer, mas por inteiro».

As massas incomodam o escritor. As massas que seguem os condutores de homens («Ignorantes de todo o mundo, ouvi-me!») e sancionam o poder. Mas também aquelas que fazem e desfazem a celebridade. Nomeadamente dos escritores: «E dos nomes das ruas que homenageiam vultos históricos. Os dos escritores, por exemplo. São curiosos. Normalmente, os escritores mais bem servidos são os escritores medíocres. Há os que dispõem de largas avenidas e na História da Literatura moram num beco qualquer. E há por outro lado os que na Literatura canalizam o grande tráfego cultural e são atirados na cidade para as ruelas do peixe frito e das putéfias. No Panteon é o mesmo, os cretinos é que se governam. Pois, pois, nem todos são cretinos. Mas nem todos são cretinos para que aqueles que o são o não pareçam tanto - quem será o cretino da estátua? Eu tenho uma teoria para explicar. A grande massa é imbecil e a grande massa é que decide destas coisas. Quero dizer: os tipos que não vão além da grande massa. Ora o imbecil só é sensível ao imbecil que o seja menos - quem será o imbecil da estátua?».

Nítido Nulo é quase um esforço desumano, um livro tirado a ferros do íntimo do escritor. A vontade era de deixar de escrever ficção, e desde Alegria Breve (1965) que não publicava um romance. Aliás, por volta da altura em que o termina, Vergílio Ferreira dizia que escreveria mais um e pronto. Porque Nítido Nulo é violento. Há violência emocional e física expressa em palavras e «acções». Depois de uma acção «revolucionária», o condenado (que se encontra preso) diz: «Desço a ver a extensão da minha força. Do crânio do polícia saltam várias molas que bamboleiam lentas no ar. Palpo-o todo nas articulações destruídas. Olho as mãos, tenho-as todas cheias de óleo». Há um acto a ser expiado. E uma desconfiança da resposta violenta. Mesmo que seja «pela liberdade».

Aliás, Vergílio Ferreira anota no seu diário a 29 de Novembro de 1969, dias depois de terminar o livro: «A propósito: acabei o romance no dia 27. Nem registei o facto. Por distracção. Porque foi um acontecimento. Nunca suei tanto. Deve ter nódoas o texto. Ainda não verifiquei. Mas deve ter. As nódoas do suor.»

Todas as interrogações do livro, que põem em causa Deus e o pecado original. Salazar e o regime. A revolução e a acção revolucionária. A liberdade e a prisão. Todas elas desembocam numa vontade de ver o horizonte, o eterno «nítido nulo» do horizonte, como única certeza. Porque a prisão do condenado não é só a prisão de um Estado. Tem algo a ver com a nossa condição humana. Mas a cela dessa «prisão» engana, porque «a sala é larga e limpa. As próprias grades são pintadas de branco para deixarem passar a alegria que puderem. Decerto entendeu-se que sofria mais assim».

Em suma, há uma frase algures em Nítido Nulo que poderia dar o tom ideal para a leitura deste livro, para mim um dos mais importantes de Vergílio Ferreira: «Dizer "não" é abrir um espaço para o homem se pôr de pé». Dizer não.

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