sexta-feira, janeiro 30, 2009

Banda sonora #2



Vampire Weekend, Mansard Roof

Banda sonora #1



Soko, My Wet Dreams

Soko



(descoberta via menina limão)

Os «quase-assassinatos»

A tentativa de José Sócrates se auto-martirizar neste processo faz lembrar uma frase de The Interpreter (filme de Sydney Pollack), em que Kuman-Kuman diz, acerca do seu adversário político e ditador de um país africano: «An almost-assassinated leader gets so much credibility, so he can stay in power and gets to stick around to enjoy it». É importante ter atenção para não ver um suspeito de um processo ser reeleito para o governo com o estandarte de mártir.

A aventura de escrever uma biografia

A ler o artigo de Pacheco Pereira no Público de 25/01/2009, disponível integralmente no Estudos Sobre o Comunismo. Fica aqui o excerto inicial:

Muitas vezes digo aos meus amigos que as peripécias que passei e passo para escrever a biografia de Álvaro Cunhal davam um livro à parte, com todos os ingredientes de um romance entre o Le Carré e uma coisa mais pícara, ou seja, uma combinação quase impossível e muito improvável. Desde início que sabia que a iniciativa seria dificultada pelo próprio Álvaro Cunhal e que este colocaria todos os obstáculos possíveis, ele e o PCP. Sabia também que escrevia no fio de uma navalha muito especial, a de estar a biografar alguém que estava vivo, que era muito hostil à iniciativa (e ao autor) e que podia com muita facilidade desclassificar a seriedade do trabalho. No fundo, a vida era dele e bastava Cunhal dizer que meia dúzia de afirmações eram erradas ou “falsas” para criar uma imagem de falta de rigor. Esta possibilidade era tanto mais real quanto eu escrevia sobre uma história em grande parte por contar, sem fontes secundárias, com fontes primárias de muito complexa interpretação (como as fontes de polícia, ou os arquivos soviéticos), mas em muitos casos sem fontes nenhumas e com escassíssimos testemunhos. Cunhal nunca o fez e soube mais tarde por testemunhos de pessoas que o contactaram nos últimos anos da sua vida, que ele elogiou a biografia que nunca desejara que fosse escrita. (...)

José Pacheco Pereira, Público/Estudos Sobre o Comunismo

A «campanha negra» e o político «idóneo»

É quase humor negro, e não uma «campanha negra», o que se tem passado em Portugal em relação ao «caso Freeport». A propaganda oficial do governo espalha a mensagem de que há uma conspiração a formar-se há muito contra um grande e sério líder político que, assim, tem de enfrentar os «poderes ocultos», segundo palavras do próprio José Sócrates. O que o engenheiro Sócrates não se lembra, ou não que quer lembrar, é que os «poderes ocultos» são aqui o Ministério Público, o último bastião da Justiça (espera-se). Assim, usando o seu direito de tempo de antena, Sócrates surge repetidamente na televisão para tentar virar o bico ao prego, afirmando-se inocente, vítima de uma «cabala» (ou não fosse ele elemento do Partido Socialista nos últimos dez anos) e jurando lutar contra os «que o querem derrubar».

Pior ainda do que tudo isto, é a Procuradoria Geral da República surgir a público para afastar suspeitas sobre o quer que seja. Ora, que eu saiba, a PGR é um órgão de justiça e não de «situacionismo» com o objectivo de garantir a ordem e a estabilidade de qualquer governo. A falta de vergonha multiplica-se pela sociedade portuguesa e infiltra-se em tudo e todos, como um vírus.

O que me estranha é que o comum dos portugueses, que suponho tenha vivido em Portugal nos últimos anos, não ligue as peças da maneira mais racional: Sócrates tem um historial de ligação (mesmo que não directa) a «facilitações» dos processos, e isso até é óbvio com a sua ideia de suspender a actual lei dos concursos públicos «para acelerar». É quase uma questão de carácter, de uma personalidade impaciente, e não, como muita gente já repete (seria ver hoje o Opinião Pública na SIC Notícias) as palavras paranóicas de José Sócrates, de um ataque a uma «pessoa idónea».

quinta-feira, janeiro 29, 2009

O que é mais importante?

Um dos problemas da adaptação de livros para o cinema é a necessidade de apelar ao público. O que poderia ser uma muleta para criar excelentes obras de cinema, muitas vezes pode levar à mutilação parcial da «lição» de um livro. O livro Relatório Minoritário, de Philip K. Dick, é um desses casos. Por um lado, temos um autor que se pautava pela paranóia pessoal e que esteve perto da esquizofrenia, mas o reflexo literário dessas condições resultara num exercício de reflexão essencial do século XX: o questionamento da necessidade e impulso de controlo das sociedades modernas. Por outro lado, temos a adaptação homónima que Steven Spielberg fez do livro, com Tom Cruise como protagonista, que, embora seja um filme muito bom (ao nível de Blade Runner, curiosamente também do mesmo escritor), sente a necessidade de romancear e criar uma rede de sentimentos que «humanize» a obra, apesar de este sentimentalismo ser comum em Spielberg. A nota negativa é que se perde um pouco a centralidade absoluta do dilema que é colocado a John Anderton: «Tens de ser preso para que a Agência Precrime possa sobreviver. (...) O que é que tem mais significado para ti: a tua segurança pessoal ou a existência do sistema?». E a questão derradeira é esta: Hollywood, no meio da acção de um filme, baralha o espectador e esquece-se de lhe fazer essa mesma pergunta, que é a mais importante do livro de Philip K. Dick. O que é mais importante: a segurança individual ou a segurança da sociedade?

Nixon contra o mundo



Em 1977, a América (e uma boa parte do mundo) não se tinha ainda esquecido do escândalo que abalou as fundações do seu sistema democrático: Watergate. O presidente Richard Nixon (que apresentara por isso a sua demissão em 1974) tinha abusado do poder de forma clara para obter vantagem política e, pior do que isso, tinha encoberto os autores do assalto ao malogrado edifício Watergate, varrido as pistas que o ligavam ao assunto e assim havia saído ileso e sem julgamento de um caso criminal. Pior do que isso, para indignação geral, Gerald Ford, o seu vice que assumiu a presidência, concedeu-lhe um perdão total. Para a maioria das pessoas, Nixon é um criminoso em fuga. É aí que começa Frost/Nixon, recente filme de Ron Howard.

É por isso que David Frost (Michael Sheen), um apresentador britânico de talk-shows, decide apresentar um projecto ao seu produtor: entrevistar Richard Nixon, o homem e o político. Versado em fazer programas recreativos mas eficazes, Frost vê aí o show ideal para angariar audiências, conseguir um resultado histórico de popularidade e, inevitavelmente, ajudar a sua carreira. Apoiado pelo produtor, os dois lançam-se ao trabalho nos EUA, comprando a entrevista a Nixon (que pediu 600 mil dólares) e tentado obter financiamento televisivo para cobrir as despesas, que já ascendiam a alguns milhões. Ninguém acredita em Frost e, por isso, ninguém acredita no projecto. E este é um ponto importante do filme: o desprezo para com Frost.

Richard Nixon (interpretado por um surpreendente mas fenomenal Frank Langella), a determinado ponto no filme, faz uma chamada a David Frost, antes da última entrevisa entre os dois. Aparentemente, estava bêbado (não se lembrará de nada) e isso permite a Frost entrever um pouco da verdadeira natureza de Nixon, homem muito complexo e com uma agressividade latente mas violenta. O ex-presidente compara-se a Frost, dizendo que «That's our tragedy, you and I, Mr. Frost. No matter how high we get, they still look down at us». O homem comum esticando-se para o estrelato, mas que é atacado por todos os lados. É assim que Nixon vê a realidade, e é assim que desenvolve a sua personalidade vingativa. Em grande parte, a empatia entre ambos nasce daí, dessa visão.

Acerca da acuidade histórica do filme, não se pode pedir muito mais. Para além da introdução totalmente enquadrada por imagens reais, entra-se no ambiente da época suficientemente convencido de que ninguém gosta de Nixon mas também ninguém se esquecera. E isto é muito bem conseguido pelas personagens políticas de Oliver Platt (Bob Zelnick) e Sam Rockwell (James Reston, Jr.), este último mais histriónico na acusação de Nixon e na fúria justiceira. Kevin Bacon faz o contraponto, encarnando Jack Brennan, a típica figura sombria da Casa Branca, ex-militar, aide-de-camp do ex-presidente e sua voz da consciência, por vezes roçando a manipulação completa da figura nixoniana.

Mas não se deve ser «historiador» ou «jornalista» na apreciação do filme. Frost/Nixon é uma obra de ficção, um pequeno spin-off da realidade - que confunde os espectadores acerca de qual será a parte ficcionada. É neste curto espaço da ficção que se desenrola a espectacular chamada telefónica nocturna de Nixon para Frost, num dos monólogos mais memoráveis dos últimos anos e que será, certamente, a punchline para o Óscar surpreendente para Frank Langella (se não premiar o também surpreendente Mickey Rourke em The Wrestler). Os menos ingénuos compreenderão que o timing deste filme estará, certamente, em linha com os sentimentos de algumas pessoas face a George W. Bush: houve quem quisesse levar Bush «à justiça» pelos «crimes de guerra» e pelos abusos de poder, e Ron Howard, ainda que apoliticamente (não há qualquer intenção ou orientação política definida), aproveita para transpor para o cinema a excelente peça de Peter Morgan (de 2007) num filme mais de interpretações do que propriamente político.

É o «duelo» (Nixon/Langella dixit) entre Nixon e Frost que sustenta todo o filme, com uma confrontação que deita energia por todos os poros. Sheen, embora não leve a vitalidade do verdadeiro Frost para a tela, consegue apanhar alguns tiques e jeitos expressivos do jornalista, que garantem a caracterização de uma personagem tout court, com fragilidade, defeitos e sentimentos. O mesmo faz Frank Langella com a sua interpretação de Richard Nixon, dando-lhe uma profundidade de personalidade que esconde tanto o abismal medo do fracasso, como a extrema agressividade que Nixon (pelo menos a personagem, embora a figura seja igual, para dizer a verdade) esconde para com os seus rivais e adversários políticos. Kevin Bacon tem, como em Mystic River, mais um excelente supporting act, que será uma vez mais relegado para segundo plano pela contenção. Frost/Nixon, por mil e uma razões mas sobretudo pelo magnetismo da interpretação de Langella, é um dos melhores filmes do ano.

domingo, janeiro 25, 2009

Estaline e o pacto com Hitler

- Como é que isto pode ter acontecido? - perguntou ela a Sam. Estavam na 8th Street, num sítio chamado Barclay's onde jantar custava noventa cêntimos em vez dos sessenta e cinco da cantina da universidade mesmo ao lado. A Village estava estupefacta, esquadrinhava a mente de Estaline, lutando para não desistir dos sovietes. Para ela, Estaline ter-se aproximado de Hitler era como se Deus fizesse sexo, comesse e se peidasse. Os sovietes tinham sido a oposição sublime à West End Avenue, aos tapetes e às baixelas de prata e à futilidade estéril da classe média citadina.

Arthur Miller, Uma Rapariga Simples

quinta-feira, janeiro 22, 2009

Work in progress

segunda-feira, janeiro 19, 2009

A úlcera de Maynard



Como é possível que só tenha descoberto a qualidade de Dennis McShade /Dinis Machado nas últimas semanas? Requiem para D. Quixote, ainda melhor do que Mão Direita do Diabo, é um dos romances mais bem construídos da literatura moderna portuguesa. Não pela profundidade nem pelo «legado» que deixa, mas pelos diálogos que têm uma rara fluidez e honestidade (fico mesmo a acreditar que há pessoas dentro do romance, e que comunicam de facto) e pela inteligência com que ironiza um género - o policial - e alguns estereótipos da literatura, como o misantropo ou o charlatão. Se a minha própria úlcera alguma vez crescer, que ao menos eu conviva com ela com a mesma classe literária que Peter Maynard convive com a sua.

Passos Coelho e Di Maria

Passos Coelho é como Di Maria no Benfica: obviamente, não é um pé torto como Binya ou uma nódoa como Balboa, e até sabe fazer umas fintas e marcar uns golos bonitos. Mas como a comunicação social e quem só vê os dois minutos dos resumos dos jogos pensam que ele é um génio, há uma certa pressão para pô-lo a jogar. No entanto, como ele não faz mais do que uns meros fogachos, a sua entrada na equipa, embora rendendo um outro golo de vez em quando e um outro momento mais espectacular, significa, na maior parte do tempo, que o Benfica joga com um a menos (a maior parte das vezes que a bola vai parar aqueles pézinhos, acaba por ser igual a fazer um passe para o adversário). E se o Benfica até pode lucrar com a ilusão de que Di Maria é um grande jogador, vendendo-o ao Real Madrid (que tem o triste hábito de cair nestas esparrelas), o PSD só tem a perder com a injustificada atenção de que Passos Coelho é alvo.

Bruno Alves, Desesperada Esperança, 19/01/2009

domingo, janeiro 18, 2009

Guerra e memória



Valsa com Bashir (2008), do israelita Ari Folman, é um filme de animação muito bom que tem pouco a ver com os objectivos que muitas animações têm: a de entreter. A animação em Valsa com Bashir é uma forma brilhante de lidar com os desafios de uma história que questiona a memória e a representação mental de experiências marcantes ou mesmo traumáticas. É mais fácil, real e confuso a narração da experiência da guerra através da animação, já que a confusão entre o que foi real (memória) e o que é sonho (representação, trauma) funciona na perfeição.

Ari Folman, realizador, argumentista e co-protagonista do filme, encontra-se num bar com um velho amigo, Boaz, que lhe conta um pesadelo que tem: todas as noites 26 cães raivosos e agressivos correm pelas ruas à sua procura, derrubando tudo à sua passagem no intuito de o encontrar. Acabam por concluir que estes 26 cães mais não são do que os cães que Boaz matou em missões na guerra do Líbano de 1982, para os impedir de ladrar e assim soar o alarme da entrada das tropas israelitas nas aldeias. Este é o mote para o começo da busca de Ari Folman (que realmente participou nessa campanha) por uma recuperação das memórias da guerra, que perturba muitos dos homens que estiveram no Líbano em 82.

A história de Valsa com Bashir é, de facto, verdadeira, já que se baseia num facto real: a campanha de 1982 no Líbano para destruir bases de lançamento de mísseis. Mais do que isso, é a veracidade dos testemunhos dos entrevistados por Ari Folman, que não são apenas personagens mas amigos e camaradas reais de Ari na guerra, que dá o tom à história e pode levar muita gente a considerar o filme uma crítica à política externa e de defesa de Israel ou, até, uma crítica anacrónica ligando a Israel de 1982 à de 2008-09. O filme não deve ser visto como tal. O tema não é a política mas a guerra; não são os inimigos mas as vítimas inocentes da guerra; nem sequer a velha história do David palestiniano e do Golias israelita, mas sim a guerra e a violência vistas por quem esteve no meio delas. A memória e os truques que ela prega são o grande tema transversal neste excelente filme de Ari Folman, claramente acima da média e provável favorito a vencedor de pelo menos um Óscar (de melhor filme estrangeiro).

O perigo da hubris dos Democratas

Peter Beinart, no Washington Post, aponta uma ironia tremenda no momento da despedida de Bush e na retórica da retirada das tropas americanas como condição da pacificação. O aumento do contingente entre 2006 e 2008 trouxe uma diminuição da violência no Iraque, que será perigoso não ser reconhecido pela nova «elite liberal» em Washington:

(...) even if the calm endures, that still doesn't justify the Bush administration's initial decision to go to war, which remains one of the great blunders in American foreign policy history. But if Iraq overall represents a massive stain on Bush's record, his decision to increase America's troop presence in late 2006 now looks like his finest hour. Given the mood in Washington and the country as a whole, it would have been far easier to do the opposite. Politically, Bush took the path of most resistance. He endured an avalanche of scorn, and now he has been vindicated. He was not only right; he was courageous.

It's time for Democrats to say so. During the campaign they rarely did for fear of jeopardizing Barack Obama's chances of winning the presidency. But today, the hesitation is less tactical than emotional. Most Democrats think Bush has been an atrocious president, and they want to usher him out of office with the jeers he so richly deserves. Even if they suspect, in their heart of hearts, that he was right about the surge, they don't want to give him the satisfaction.

Yet they should -- not for his sake but for their own. Because Bush has been such an unusually bad president, an entire generation of Democrats now takes it for granted that on the big questions, the right is always wrong. Older liberals remember the Persian Gulf War, which most congressional Democrats opposed and most congressional Republicans supported -- and the Republicans were proven right. They also remember the welfare reform debate of the mid-1990s, when prominent liberals predicted disaster, and disaster didn't happen.

Younger liberals, by contrast, have had no such chastening experiences. Watching the Bush administration flit from disaster to disaster, they have grown increasingly dismissive of conservatives in the process. They consume partisan media, where Republican malevolence is taken for granted. They laugh along with the "Colbert Report," the whole premise of which is that conservatives are bombastic, chauvinistic and dumb. They have never had the ideologically humbling experience of watching the people whose politics they loathe be proven right.

(...)

That's why it's important to admit that Bush was right about the surge. Doing so would remind Democrats that no one political party, or ideological perspective, has a monopoly on wisdom. That recognition can be the difference between ambition -- which the Obama presidency must exhibit -- and hubris, which it can ill afford.

Being proven right too many times is dangerous. It breeds intellectual arrogance and complacency. As the Democrats prepare to take over Washington, they should publicly acknowledge that on the surge, they were wrong. That acknowledgment may not do much for Bush's legacy, but it could do wonders for their own.

sábado, janeiro 17, 2009

Dog eat dog



SEFTON (William Holden) - The first week I was in this joint, somebody stole my Red Cross package, my blanket, and my left shoe. Well, since then I've wised up. This ain't no Salvation Army - this is everybody for himself, dog eat dog.

Stalag 17 (1953), de Billy Wilder

sexta-feira, janeiro 16, 2009

CIA



BILL SULLIVAN (Robert de Niro) - I'm concerned that too much power will end up in the hands of too few. It's always in somebody's best interest to promote enemies real or imagined. I see this as America's eyes and ears; I don't want it to become its heart and soul.

The Good Shepherd (2006), de Robert de Niro

Peter Maynard

Peter Maynard é um assassino a soldo. Apesar de não ser velho, tem um certo desejo de se retirar do seu ofício. Talvez por já se achar indigno da tarefa de ser a «mão direita do Diabo», ou a «mão esquerda de Deus» conforme o ponto de vista. Talvez por ter uma úlcera que já não se parece curar. Úlcera essa que o castiga em momentos de maior nervosismo. É por isso que, quando Lucky Cassino lhe passa a proposta do milionário T.R. Douglas - de matar os quatro homens que, muito anos antes, lhe violaram a filha -, Maynard aceita a missão desapaixonadamente. Não por gosto, mas por hábito. Por honra de profissional. Apesar de muitas coisas começarem a correr mal na missão, e na sua relação com o Sindicato (grupo organizado de mafiosos que o querem à força controlar), é apenas a sua honra que o leva a persistir na missão até ao fim.

Mão Direita do Diabo é um livro que poderia ser banal, não fosse a sensibilidade irónica de Dinis Machado e a sua enorme cultura literária. Em casa de vítimas, suspeitos e informadores, Maynard espreita as estantes para avaliar quem tem pela frente. Por vezes, indigna-se com a falta de cultura, mas não se surpreende. O impulso não é o de assassino, mas o de literato. Ouve Beethoven e Dvorak, cita autores e vai ao teatro criteriosamente. Não deixando no entanto de seguir as pisadas clichés de agentes secretos e assassinos profissionais. Embora tenha a sua namorada habitual, seduz e usa as mulheres para objectivos profissionais, não sem ter algum apreço por elas. Um James Bond sentimental mas com menos escrúpulos. E do lado errado da lei. Pater Maynard é uma criação original http://www.blogger.com/img/blank.gifde Dinis Machado/Dennis McShade. E isso dá-lhe um brilho único. O jogo entre o fascínio do crime, a ironia e a cultura (livros, cinema, música, teatro) é a chave para a qualidade de Mão Direita do Diabo. Isso e a escrita segura de Machado. Uma obra vintage, que vai ficando melhor com a idade.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

Sad Kermit



O sapo Cocas interpreta Elliott Smith.

O estado das coisas


Elliott Smith

Presentemente com cabelo igual ao dos génios.

Gosto

De tipos que, como eu, não se sabem pentear e (por preguiça e desleixo, não por preferência estética) ficam vários meses sem cortar o cabelo.

terça-feira, janeiro 13, 2009

Nítido Nulo



À força de algum simplismo, poder-se-ia eleger como principal atractivo dos romances de Vergílio Ferreira um traço distintivo: a interrogação. A interrogação que Vergílio faz da vida e da morte, do sentir, da luta, da família, de Deus, do destino, do corpo. Muitas das suas questões rodeiam a importância do corpo, directa ou indirectamente. Porque o corpo é grande (senão a única) ligação do «Eu» à existência. Mas não há respostas. Só grandes interrogações. E Nítido Nulo é uma obra que as faz com grande vigor.

O escritor Vergílio Ferreira mistura-se aqui com o narrador omnipresente e com a personagem principal Vergílio Ferreira, tal como o tempo se mistura com o passado, o presente e momentos transversais, que se parecem repetir no ontem e no amanhã com diferentes reacções do «Outro». O tempo em que escreve o romance é 1969, logo o ambiente revolucionário, e a dúvida acerca desse ideal (socialista, comunista, anarquista ou utopista) impregnam as páginas de Nítido Nulo. O tempo de mudança anuncia-se, com algum sarcasmo à mistura: «Queimai os livros todos, porque a verdade ainda não foi escrita e dos novos ignorantes é o reino dos céus. Se vos disserem que há uma Lei - não! Perguntai-lhes quem é que fez a Lei e desobedecei, que dos desobedientes é a glória eterna».

É claro que esta «desobediência» acaba por ter múltiplas frentes. A primeira desobediência á de ordem política, de ordem material. Sendo o ano 1969, a referência à provecta idade de Salazar e à do sobrevivente regime não deixa grandes dúvidas, ainda que sob a forma de metáfora inespecífica: «O nosso chefe do Governo tem já cento e cinquenta anos. E uma idade bonita. Não, porém, muito avançada em relação ao avanço dos princípios que nos regem e têm já mais de quinhentos. (...) Uma rede de arame cruzava todo o país, arame ferrugento. Pelos intervalos passava a vida». Portugal estava decrépito, e Vergílio Ferreira sente os ventos de mudança no ar. Daí a referência aos rebeldes, que, conforme a reflexão do condenado Jorge (o Eu), oscilam entre as roupagens de revolucionários e de terroristas.

A outra desobediência é face a Deus, face à certeza de que alguém nos expia os pecados ou sequer que os vêm cobrar. Ridiculariza as referências: «Essa coisa de ressuscitar ao terceiro dia, mesmo que fosse ao terceiro do terceiro - palhaçadas, não. Morrer, mas por inteiro».

As massas incomodam o escritor. As massas que seguem os condutores de homens («Ignorantes de todo o mundo, ouvi-me!») e sancionam o poder. Mas também aquelas que fazem e desfazem a celebridade. Nomeadamente dos escritores: «E dos nomes das ruas que homenageiam vultos históricos. Os dos escritores, por exemplo. São curiosos. Normalmente, os escritores mais bem servidos são os escritores medíocres. Há os que dispõem de largas avenidas e na História da Literatura moram num beco qualquer. E há por outro lado os que na Literatura canalizam o grande tráfego cultural e são atirados na cidade para as ruelas do peixe frito e das putéfias. No Panteon é o mesmo, os cretinos é que se governam. Pois, pois, nem todos são cretinos. Mas nem todos são cretinos para que aqueles que o são o não pareçam tanto - quem será o cretino da estátua? Eu tenho uma teoria para explicar. A grande massa é imbecil e a grande massa é que decide destas coisas. Quero dizer: os tipos que não vão além da grande massa. Ora o imbecil só é sensível ao imbecil que o seja menos - quem será o imbecil da estátua?».

Nítido Nulo é quase um esforço desumano, um livro tirado a ferros do íntimo do escritor. A vontade era de deixar de escrever ficção, e desde Alegria Breve (1965) que não publicava um romance. Aliás, por volta da altura em que o termina, Vergílio Ferreira dizia que escreveria mais um e pronto. Porque Nítido Nulo é violento. Há violência emocional e física expressa em palavras e «acções». Depois de uma acção «revolucionária», o condenado (que se encontra preso) diz: «Desço a ver a extensão da minha força. Do crânio do polícia saltam várias molas que bamboleiam lentas no ar. Palpo-o todo nas articulações destruídas. Olho as mãos, tenho-as todas cheias de óleo». Há um acto a ser expiado. E uma desconfiança da resposta violenta. Mesmo que seja «pela liberdade».

Aliás, Vergílio Ferreira anota no seu diário a 29 de Novembro de 1969, dias depois de terminar o livro: «A propósito: acabei o romance no dia 27. Nem registei o facto. Por distracção. Porque foi um acontecimento. Nunca suei tanto. Deve ter nódoas o texto. Ainda não verifiquei. Mas deve ter. As nódoas do suor.»

Todas as interrogações do livro, que põem em causa Deus e o pecado original. Salazar e o regime. A revolução e a acção revolucionária. A liberdade e a prisão. Todas elas desembocam numa vontade de ver o horizonte, o eterno «nítido nulo» do horizonte, como única certeza. Porque a prisão do condenado não é só a prisão de um Estado. Tem algo a ver com a nossa condição humana. Mas a cela dessa «prisão» engana, porque «a sala é larga e limpa. As próprias grades são pintadas de branco para deixarem passar a alegria que puderem. Decerto entendeu-se que sofria mais assim».

Em suma, há uma frase algures em Nítido Nulo que poderia dar o tom ideal para a leitura deste livro, para mim um dos mais importantes de Vergílio Ferreira: «Dizer "não" é abrir um espaço para o homem se pôr de pé». Dizer não.

Os charlatões clássicos



The Sting (1973), de George Roy Hill

domingo, janeiro 11, 2009

Futebolização da onomástica portuguesa

Fiquei a saber que uma criança da minha cidade se chama Cristiano Rivaldo. Das duas uma: ou é a adopção de um dos aspectos mais caricatos da cultura brasileira (nomes exóticos e estranhos), ou estamos, simplesmente, a tornar-nos mais labregos. Sendo eu extraordinariamente optimista em relação a Portugal, aposto na segunda hipótese.

sábado, janeiro 10, 2009

Tempo de antena

Serei apenas eu que acho que a presença de António Costa na Quadratura do Círculo, e a natureza das suas intervenções, é sintomática do estado do país, imerso em propaganda, mentira e lavagens ao cérebro?

Três anos



Foi há três anos que A Causa das Coisas nasceu. Os primeiros posts citavam Leonard Cohen e Vergílio Ferreira. As raízes, espero eu, não se perderam.

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Tudo é ridículo

Ah, tudo é ridículo, excepto saber que é tudo. O trágico é que saber não adianta.

Vergílio Ferreira, Nítido Nulo

Comte e a crise

Num canal de televisão, oiço um homem numa exposição (aparentemente, uma tal de Exponoivos) a pronunciar-se acerca do ano que aí vem, dizendo que é preciso é «positivismo». Isso mesmo, positivismo. Segundo ele, não podemos ficar presos às coisas más porque também há coisas boas. E para isso dá o exemplo do casamento, inclusive o seu, no qual é preciso que o casal tenha uma vivência de «positivismo». Brilhante. Soa-me que, afinal, não é só o marxismo que querem recuperar. E, ou muito me engane, ou ainda vamos ouvir muitas vezes a palavra «positivismo» em 2009.

quinta-feira, janeiro 08, 2009

O estado das coisas



A tentar perceber a importância destes sujeitos.

Ensaio sobre a rotina

No primeiro intervalo do turno da manhã disse, alto e bom som, que não gosto muito de trabalhar. Disse, ainda, que se pudesse viver do ar que respiro seria o ideal para mim. É claro que dizer isto numa altura em que os professores são acusados de tudo e mais alguma coisa, não caiu bem em alguns dos meus colegas. Vieram com filosofias da treta a dizer que rapidamente me cansaria de não fazer nada, que iria ser o marasmo e o tédio. Não concordo, disse. O marasmo e o tédio são uma consequência directa da rotina, da vidinha minimal e repetitiva (como diz um amigo meu), expliquei. Não senhor, disseram. E cada um ficou com a sua opinião. Mas eu, aqui, reitero: não gosto muito de trabalhar e não me dou bem com a rotina quotidiana do trabalho. Considero-o cruel e vil. Entediante. Mas não pense o leitor que sou um sorna. Sei quais as minhas responsabilidades, os meus deveres. Tento cumpri-los, dando o meu melhor todos os dias. Mas não gosto muito de trabalhar.

manuel a. domingos, no meia-noite todo dia

quarta-feira, janeiro 07, 2009

War, what is it good for?

As pessoas que, guiadas (ou teleguiadas) pelo jornalismo mainstream acrítico, vão atrás da tese habitual de que Israel quer chacinar todos os muçulmanos do Médio Oriente - começando pelos Palestinianos -, continuam presas a um preconceito que não ajuda ninguém, e muito menos a Palestina. Falham, sobretudo, em perceber que os Palestinianos são mais prejudicados pelo fanatismo ideológico de grupos como o Hamas do que pelos próprios colonos israelitas. Falham igualmente em perceber um dos factos básicos de tudo isto: ninguém beneficiaria mais de uma Palestina autónoma, forte e desenvolvida do que o próprio Estado de Israel. Antes de vaiar a retaliação (brutal e condenável como quase todos os actos de guerra) destes últimos, é preciso parar para pensar e descobrir quem é que fica a ganhar com o fracasso da paz na faixa de Gaza e com o conflito na região. Israel não é. A Palestina também não. E essa é a verdadeira tragédia.

A imprensa no início do século


Numa sociedade em que, para a minoria instruída - ou uma grande parte dela -, «tudo era política» e em que faltavam partidos políticos, movimentos ou sindicatos fortes, esta teia de comunicação jornalística representou uma fase de extrema importância na comunicação política, quer manifesta, quer latente, sendo mesmo constitutiva da vida política enquanto tal. Seria errado ver neste florescimento das publicações periódicas apenas a manifestação de uma hegemonia político-cultural de tipo urbano ou metropolitano, porque, embora o primado das duas maiores cidades, Lisboa e Porto, seja visível neste como noutros indicadores, a sua explosão reflectia-se como um todo.

Hermínio Martins, «O colapso da I República», em Classe, Status e Poder

terça-feira, janeiro 06, 2009

Noise

A sociedade caiu refém do barulho, do preenchimento dos espaços vazios mesmo no domínio sonoro. Saio para ler um pouco no café e logo na rua os carros buzinam. As luzes ajudam ao frenético cruzamento de vezes vozes e anúncios (com altifalante) no ar. Nos cafés é a história habitual: a televisão acesa grita alguns programas genéricos «da manhã» ou «da tarde» supostamente concebidos para os reformados ou para a terceira idade - uma ex-apresentadora da Noite da Má Língua, aliás, chama esganiçada os telespectadores que possam estar ainda distraídos e que não a tenham ainda ouvido -, confunde-se com as vozes das pessoas no café e compete pela atenção maior. A disputa pelo som mais alto começa. As pessoas falam mais alto para se tentarem compreender por entre as ondas sonoras do programa de televisão e ambicionarem ouvir o que a pessoa ao lado lhes quer dizer. O televisor parece aumentar o volume num ciúme quase humano pelo «espaço vital», e volta ao pódio do barulho. As pessoas no café respondem falando ainda mais alto. A televisão idem. Por vezes são os canais de música que enchem os cafés, bares e restaurantes. Noutras horas do dia ou da noite, os talheres juntam-se a orquestra. E assim se preenche tudo o que os ouvidos podem alcançar com lixo. O ser humano desenvolveu uma espécie de alergia, de nojo pelo silêncio, pelo vazio, pelo espaço livre, um ódio à solidão do silêncio. Ninguém quer estar sozinho consigo mesmo (o que é compreensível, já que eu próprio sei o castigo que é estar na minha própria presença). Quando, ao sair do trabalho, ao chegar a casa ou ao «levitar» para os andares cimeiros de um centro comercial, entrar dentro de um elevador público que não o deixa sozinho com os seus pensamentos - bombardeando-o com uma música irritante dita «de elevador» -, percebe-se que nem mesmo sozinho é possível, de facto, estar sozinho e em silêncio.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

O tubarão

Freud era mais simplista, directo mas também mais generoso do que eu na avaliação do comportamento humano. Dizia ele que o homem não nasce bom nem mau em si mesmo, mas sim com instintos de sobrevivência, aos quais não é alheia a capacidade de destruição. Ou seja, acreditava (e julgava capaz de ser provado) que o homem não era mau em si mesmo tal como um tubarão não é mau por ser um predador. «Dizemos que o tubarão é mau por fazer o que faz?», perguntava ele. Nesta condescendência naturalista, Freud dava mais preponderância aos instintos do que à escolha livre quanto à maldade humana. Ainda assim, não me parece que seja muito abonatório da nossa capacidade de convivência uns com os outros.

Evil prevails



YURI ORLOV - They say: «Evil prevails when good men fail to act». What they ought to say is: «Evil prevails».

Lord of War (2005), Andrew Niccol