Encontrar um bom livro no baú de um familiar antigo e lê-lo, é, sem dúvida alguma, uma tarefa compensadora. O cheiro a guardado, aliado ao pó que desliza pelos dedos aventureiros, o amarelo das páginas, as letras impressas ao modo do antigamente, tudo isso faz com que o acto de ler seja motivo de regozijo. Bichos, livro de contos da autoria de Miguel Torga, escritor que, por diversos motivos, me era familiar apenas pelo nome, foi uma das relíquias que encontrei no meio do pó que me coube de herança.
Um senhor que muito prezo já me havia avisado: «nunca li Torga, mas, pelo que sei, trata-se de um grande prosador.» Nem mais. O senhor André, sempre embebido pelos sonhos que nunca se chegaram a cumprir, não costuma falhar nestas coisas. É um céptico. Além disso, já viveu e conheceu muito. «Tivesse eu a sapiência desse senhor e não leria nem mais um livro», dir-me-ia o Zé Carlos. Por muito idealista que seja, vejo-me, por vezes, obrigado a concordar com o imberbe. A literatura, com o passar dos anos, passa a ser pensada em vez de lida, recordada em vez de memorizada, dita em vez de escrita. Tudo tem o seu tempo, principalmente a época da fanfarronice.
O óbvio: Bichos é um livro onde se conta a história de vários animais que, por serem inferiores ao Homem, ganham o nome de bichos. Nero, homónimo do imperador, nunca chega a ultrapassar a sua condição de cachorro. Mago, o gato, não consegue perceber o real alcance do seu mágico nome. Tenório, o galo, muito «Cá-que-rá-cá» faz mas não atinge o poder de macho. O medo controla-o. Enfim, todas as personagens animalescas desta pequena obra são sempre remetidas para a sua condição inferior. São maltratadas por um homem ainda menos racional que os bichos que aterroriza. Miura, o touro, é posto no meio de uma tourada e nunca percebe o que se passa à sua volta. Só sabe que tem de perseguir o manequim de lantejoulas, o toureiro. No entanto, a dor supera-o sempre. Vejamos: «Subitamente, abriu-se-lhe sobre o dorso um alçapão, e uma ferroada fina, funda, entrou-lhe na carne viva. Cerrou os dentes, e arqueou-se. Num ímpeto.» Uma engraçada estória de alienação mental está ligada à personagem do Senhor Nicolau, uma das únicas figuras humanas a serem figura central de uma narrativa: «As nações desabavam, sucediam-se guerras, a própria aldeia oscilava nos gonzos. Mas o senhor Nicolau alheio às paixões humanas, continuava a povoar os dias de libélulas e borboletas.»
Apesar de tudo, Bichos, no meio do seu belo discurso rural e anedótico, conhecido para quem conhece o modo de funcionamento da aldeia, consegue formar, na sua essência, um hino à liberdade. A espiritualidade está quase sempre presente nas mentes destes seres humanizados. Vicente, o corvo, não se resignando por estar fechado há quarenta dias nas arca de Noé, não se sentindo culpado pelas fornicações humanas, foge. É perseguido e castigado. Mas nunca desiste de ser livre, de se livrar da condenação terrena. Deus bem o quer castigar por ter fugido a Noé, mas Vicente não aceita a derrota. «Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.» Se este livro não tivesse sido escrito em 1940, diria que Papillon e Vicente eram irmãos. Mas Torga, o criador deste último, nunca escreveria «bastards».
[Paulo Ferreira]
sábado, setembro 09, 2006
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário