sexta-feira, setembro 29, 2006

Rompendo o bloqueio


Confesso que tenho um fascínio enorme por Hugo Chávez. Aliás, muita gente na minha cidade e, especialmente, na minha rua também o tem. Antes do mais, gosto muito da figura física do sr. Hugo Chávez. Faz lembrar o corpo do Karl Rove no final dos faustosos banquetes das campanhas eleitorais do presidente Bush, mas com a cabeça de um defesa central da selecção de futebol colombiana. E atenção que realço a cabeça, e não apenas a expressão facial, pois todos sabemos muito bem o que vai na cabeça do Rove (que «pôs lá o outro não sei como»), e como tal decidimos compará-lo antes a um intelecto digno do melhor regime democrático sul-americano.

Mais a mais, a minha rua gosta imenso do Hugo Chávez porque ele poderia muito bem misturar-se no café do sítio e beber minis seguidas sem ser reconhecido. Sendo ele um líder internacional de grande habilidade retórica, saberia adaptar o discurso a nós, que temos menos estudos, e falar connosco do Diabo e do có-bói do Texas que facilmente arranjava um lugar na lista do plantel da sueca. E por falar em có-bóis, ficámos muito impressionados quando, encontrando uma revista Time no chão do Estádio do Bonfim, lemos com atenção (e estupefacção) uma entrevista ao Presidente Chávez onde ele respondia que gostava mais dos filmes do Danny Glover do que dos do Clint Eastwood, o que é uma coisa louvável nos dias que correm, sendo o Danny Glover de raça negra e tudo o mais.

E como ele gosta tanto de nós, pobres e minoritários, não pode escapar a uma admiração mútua, e a uma homenagem que agora, voluntariamente, quisemos fazer. Acima de tudo, queríamos Hugo Chávez como candidato à Câmara Municipal, agora que mandaram o outro embora. Era mesmo isso que nós queríamos. Ou ele o Diego Maradona, ou mesmo o Professor Neca, que, para além de ter mais estudos que os outros, deve governar mais à esquerda e até já deve ter estado em Lisboa. Mas pronto, «só cá estão os que já contámos»... Como era mesmo aquela expressão?

[João Carlos Silva]*

*em representação de uma ínfima, muito sumida, parcela da cidade de Setúbal

A ler

Merece ser lido, o artigo de Esther Mucznik no Público de hoje. Pelo ponto de vista intelectual (e eventualmente académico), e não apenas pelo religioso, Mucznik escreve um texto muito oportuno, como aliás quase sempre:

«Nos manuais escolares, a religião judaica simplesmente não existe, nem como religião, nem como presença histórica, restam apenas os preconceitos, esses sim amplamente veiculados, e uns vagos textos alusivos ao Holocausto. (...) De uma forma geral, a religião surge como marginal à história da humanidade, a não ser como causa de guerras e atrocidades, e é definitivamente relegada para as aulas de Religião e Moral.»

[João Carlos Silva]

Ver e ouvir



Luis Fernando Verissimo & Ennio Morricone

[João Carlos Silva]

quarta-feira, setembro 27, 2006

Trivialidade

A quem não tem nada é proibido não amar a merda.

- Samuel Beckett, Molloy

[Paulo Ferreira]

Exemplaridade

A empregada do velho alfarrabista era tão cumpridora das suas funções que só se peidava atrás do balcão, longe dos livros.

[Paulo Ferreira]

Perfume

O velho disse que aquele perfume era fogo. O neto não acreditou e queimou-se. Porém, se alguém perguntasse ao rapaz de onde provinham as cicatrizes, ele responderia que a culpa era da puta.

[Paulo Ferreira]

domingo, setembro 24, 2006

Sabedoria antiga

Conheci ontem um homem que me demonstrava a sagacidade dos assassinos na hora do crime. Segundo ele, e segundo os gestos que fez, tanto Lee Harvey Oswald como Ali Agca e o assassino de D. Carlos cuspiram na mão (na bala), carregaram a arma e fecharam um olho para apontar. «Adeus meu amor!», cada um deles gritou, antes de puxar o gatilho. «Pum, e ficava tudo resolvido».

[João Carlos Silva]

On top

«A SIC Mulher tem um programa no qual quatro mulheres discutem os homens e outro em que quatro homens discutem as mulheres. Chamam-se, respectivamente, "Elas sobre eles" e "Eles sobre elas". Dada a ubiquidade do tema "sexo", ambos os títulos podem ser lidos no sentido acrobático.»

Paulo Nogueira, Expresso 23/09/2006

[João Carlos Silva]

sábado, setembro 23, 2006

Troféus

As fezes da menina eram tão boas e tão bonitas que a avó, ao vê-las caírem do rabinho da criança, decidiu emoldurá-las.

[Paulo Ferreira]

United 93



É raro haver filmes que nos prendam ao écrã, física e emocionalmente, durante todo o tempo. United 93, no entanto, pertence a esse restrito lote de películas. O filme de Paul Greengrass sobre o que aconteceu no voo 93 da United Airlines e sobre o que se soube e viu do 11 de Setembro em terra (especialmente, pelos controladores do tráfego aéreo) é um que nos catapulta cinco anos para trás sem nos darmos conta disso, e que nos desperta novamente sentimentos que surgiram à pele, com todo o seu fulgor, nesse dia 11.

A forma como os tripulantes e passageiros do voo 93 são apanhados de surpresa é, de facto, arrepiante. Mas o que realmente nos deixa de rastos (imaginando o que pensariam essas pessoas) não é o desvio do avião em si, mas o desvio do avião no contexto dos ataques terroristas de Nova Iorque. Ao entrarem em contacto com famílias e alguns cidadãos anónimos (civis e autoridades), os passageiros relatam o que se passa lá dentro e ficam a conhecer o que se passou nessa manhã em Nova Iorque e Washington. Ou melhor, ficam a conhecer o que se passou nessa manhã na América: um ataque terrorista de uma magnitude sem precedentes.

A «luta» dessas pessoas (no ar e em terra) para manter o auto-controle e a forma como o conseguem e decidem enfrentar a situação - lutando, verdadeiramente - é, portanto, o principal fio da interpretação do realizador, que tentou, com todos os documentos disponíveis, retratar o que realmente se passou. Como um filme que recorda o 11 de Setembro de 2001 e evoca a memória dos passageiros do voo 93, em toda a sua coragem e recusa de perecer por um plano terrorista de que acabavam de ter conhecimento, United 93 traz-nos algumas das lágrimas que ficaram por cair com as primeiras imagens da tragédia do World Trade Center. Mas é sobretudo enquanto relato da vontade de lutar, pela defesa das suas vidas e dos que o rodeiam, dos passageiros que o filme mais nos comove, e mais nos deixa devastados nas cadeiras de cinema. Sem tiques de filme épico, mas ainda assim digno da galeria dos filmes mais respeitáveis do último ano.

[João Carlos Silva]

quinta-feira, setembro 21, 2006

De uma conversa sobre fé



«Ai Chico Zé...»
«Diz mulher!»
«Não gosto nada deste papa novo que a gente tem. É demasiado religioso.»

[João Carlos Silva]

sábado, setembro 16, 2006

Fazer escola

Conheço um homem que, durante o acto sexual, gera estrondosos hinos à masculinidade, chamando a sua mulher de puta. Seguindo a vida desse homem que conheço, confesso que aprecio aqueles que incluem, entre literaturas menores e enfadonhas, a palavrinha de quatro letras nos seus escritos. Puta. É bonito, prático e barato. «Minha grandessíssima mulher da vida!», não soaria tão bem, nem a coisa sairia como se desejaria. Mas, infelizmente, o Politicamente Correcto (leia-se Portugal Contemporâneo) ainda predomina. E, devido à predominância de uma alma colectiva, repleta de defesas da honra e de fotogenias, estamos todos obrigados, varões da consciência da preservação intelectual, obrigados a dizer mariquices. Chega-se a namorada e o rapagão exclama: «ai, minha marota/macaca/malandra/cabrita/afoita/desnaturada, agora é que me lixastes!» Não dá.

[Paulo Ferreira]

O estado das coisas


Passageiro

[João Carlos Silva]

sexta-feira, setembro 15, 2006

Pause / Break

Engraçado passar uma vida ligado ao computador e nunca ligar a certas teclas em que se costuma carregar. Home, End, Delete, Pause, Break, Control. Enfim, um roteiro sentimental para um dia de chuva. Um indício de tempestade.




[Paulo Ferreira]

De uma rapariga que se recusava a dar um beijo:

«Compra um gelado, rapaz, compra!»

[Paulo Ferreira]

quinta-feira, setembro 14, 2006

Antes pesado que Chefe-de-Estado



A barriga, dilema existencial que me acompanha neste último par de anos. Ora, o meu conselho e contributo para a discussão em causa é este: respeitar a protuberância, dá aquele simpático ar de quem negligencia a imagem pública.

[João Carlos Silva]

The right stuff

José Alberto Carvalho (RTP) fez, há momentos, uma piada sobre o controle anti-armas do Canadá. Não me venham agora dizer que não é um homem com a cabeça no sítio.

[João Carlos Silva]

«Segundo um rigoroso estudo»

A Universidade de Bona fez mais um estudo, desta vez sobre as diferenças entre lavar pratos à mão e lavar pratos à máquina. Sei que a coisa não era bem assim, mas decidi aproveitar, também eu, para escrever «Universidade de Bona.» Passei a infância a ouvir dizer da referida instituição (diz que isto, diz que aquilo), cresci com estudos vindos de Bona, engasguei-me hoje ao almoço a ouvir esse nome. Tinha direito e já fazia falta um pouco de espírito académico a esta balbúrdia.
Bona, Bona. Meus ricos carapaus.

[Paulo Ferreira]

De assinalar

«(...)é importante não olharem tanto para o vosso umbigo. É que podem perder de vista a tal que não se importa.» Um bom conselho para jovens imberbes, e pouco virados para o essencial, como eu.

[Paulo Ferreira]

Preocupação



O Bruno disse tudo: «método David Hasselhoff de encolhimento prolongado da barriga.» Gostei. Não é todos os dias que um amigo nos associa a grandes fazedores de escola. Espero é que, como em tudo o resto, este método só se torne prática comum em Portugal daqui a muitos anos.

[Paulo Ferreira]

quarta-feira, setembro 13, 2006

86

Oitenta e seis quilos. Nem queria acreditar. Pesar setenta e nove, oitenta, vá lá que não vá. Agora, oitenta e seis quilos é algo que só está ao alcance de poucos. Pesei-me e pensei: acabei de regressar dos Estados Unidos, logo, é normal que o meu peso não corresponda à minha grande beleza. Mas não. Antes de viajar para a civilização, já gozava de uma considerável protuberância no lugar dos abdominais, no entanto, como todos os grandes sedutores, encolhia-a sempre que não estávamos a sós (eu e ela, minha barriga e possível futura companheira). Sempre que entrava alguém nas nossas conversas, ela, envergonhada,escondia-se. Cobarde, como quem lhe deu comida para a boca.

Realmente, a minha deslocação ao Garden State (ficou-me a alcunha do Estado) pode explicar o facto de este menino que aqui escreve possuir mais seis quilos do que possuía nos tempos em que apenas navegava pela costa africana (Portugal, mais precisamente). Um país rico oferece, para além de inteligência e educação, comida. Ora, eu, que nunca fui enjoado, fartei-me de comer (desde as «bagels» aos deliciosos aperitivos da Dunkin'Donuts, desde as marisqueiras da grande Red Lobster aos petisquinhos dos barzinhos de Nova Iorque). Tudo o que fiz nos Estados Unidos no mês de Agosto teve relação com a comida. Até a ler comia. Ia ao mar nadar e, três a quatro braçadas depois, o ataque cardíaco chamava por mim. Deste modo, e sabendo que quem vai às américas fica logo melhor da constipação intelectual, posso dizer, sem medos de ironias dos senhores doutores pátrios, que fiquei um boi. Há quem diga que até mamas ganhei. E eu observo-me ao espelho e penso: és bonito.

Um desgraçado da aldeia da minha avó costuma avisar que «bonitos são os bois.»Pois bem, admito, sou um boi. Mereço: quem engorda assim ou é boi ou é cavalo. Por via das dúvidas, escolho o título de boi, diferente do cavalo, conhecido por cheirar mal. Já me chamaram também de chibo. Mas não me vejo como cabrito. Nem pensar. Parolo é que não. Já ouviram falar de Miura, o touro? Torga sabia sobre o que escrevia. Prefiro ter farpas e cornos a cheirar mal. Pelo menos, a dignidade permanece dentro de mim.

Hoje corri. Ia morrendo. Transpirei, transpirei, transpirei. No final, oitenta e seis quilos. Levanto pesos. Leio livros, a ver se perder estupidez também dá direito a perder peso. Penso e aborreço-me. E o coração bate. O que vai ser das fãs? Dos milhares e milhares de jovens a delirarem por uma aparição pública? O que vai ser de mim ? Pára lá com isso.

Um amigo meu diz que «elas», as mulheres, pérfidas ladras de sentimentos, gostam de «nós» assim, gordos. Contudo, a minha opinião é a de que ele só me dá esse tipo de revelações por ser magro, muito magro, e, claro, por não ter nada que se aproxime do conceito de namorada. É um bom rapaz, no entanto, o meu amigo.

Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues,Moacyr Scliar, entre outros brasileiros sábios e razoáveis (que contradição, falar-se em brasileiros e sábios), põem a mulher em segundo plano. Ela é a mulher que leva na tromba porque não faz as coisas (dos homens) a tempo e horas, ela é a mulher supérflua que pinta as unhas e pensa imediatamente em orgasmos e em músculos. Ela é a mulher, que por ser mulher, nunca será grande coisa. Pode ser que, no meio de várias verdades, estes autores levem a coisa na brincadeira e que atribuam real e merecido valor à mulher. Fica, no entanto, a mensagem: se perdes a barriga por causa das mulheres, és traído e, por conseguinte, tornas-te num eterno marido, num corno. Esta é uma das mensagens do anjo pornográfico.

Gordo ou magro, não morrerei, para já. Continuarei a seguir os passos dos outros, a tentar sobreviver num país onde a nutrição é feita a sopro de ar e a «sandes» (raio de palavra). O pior são as saudades da América. América.


[Paulo Ferreira]

Saudade:

Lembrança triste e suave de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de as tornar a ver ou a possuir. Pois.

[Paulo Ferreira]

terça-feira, setembro 12, 2006

Memória



[João Carlos Silva]

A mão que leva, traz

Todas as noites, pela mesma hora, o louco camponês pegava na sua enxada e ia para a rua gritar. Como ninguém o ouvia a não ser o céu, que lhe devolvia a voz através do eco, o componês assustava-se e ainda mais gritava. Um dia, tudo acabou numa horrível mas bela tragédia: o camponês, farto de repercussões demoníacas e de pensamentos devastadores,lançou a sua enxada pelos ventos e ela foi-lhe devolvida ao pescoço.

[[Paulo Ferreira]

Fantasmas III

Se tudo o que vive tem de morrer, então, a própria obra de Shakespeare é um paradoxo do tamanho da minha ignorância.

[Paulo Ferreira]

Fantasmas II

A rainha, mãe de Hamlet, dizia que tudo o que vive tem de morrer. Concordo. Mas aparecerá sempre algo que me fará discordar. E assim se dão os paradoxos.



[Paulo Ferreira]

Devoção

Como alguns senhores doutores de uma universidade qualquer fizeram questão de tornar o dia 11 de Setembro difícil para a minha pessoa, só hoje posso assinalar a minha devoção:



[Paulo Ferreira]

domingo, setembro 10, 2006

Fantasmas

All that lives must die,
Passing through nature to eternity.


- William Shakespeare, The Tragical History of Hamlet Prince of Denmark

[Paulo Ferreira]

sábado, setembro 09, 2006

Onomástica brasileira

Há momentos, no Rio de Janeiro, uma fiel seguidora das notícias de Portugal deu à luz um belo mulatinho de 4 quilos. Após ter lido o jornal, decidiu-se por um nome para o filho: chamar-lhe-á Caso Mateus da Encarnação.

[João Carlos Silva]

A grande fuga dos bichos

Encontrar um bom livro no baú de um familiar antigo e lê-lo, é, sem dúvida alguma, uma tarefa compensadora. O cheiro a guardado, aliado ao pó que desliza pelos dedos aventureiros, o amarelo das páginas, as letras impressas ao modo do antigamente, tudo isso faz com que o acto de ler seja motivo de regozijo. Bichos, livro de contos da autoria de Miguel Torga, escritor que, por diversos motivos, me era familiar apenas pelo nome, foi uma das relíquias que encontrei no meio do pó que me coube de herança.

Um senhor que muito prezo já me havia avisado: «nunca li Torga, mas, pelo que sei, trata-se de um grande prosador.» Nem mais. O senhor André, sempre embebido pelos sonhos que nunca se chegaram a cumprir, não costuma falhar nestas coisas. É um céptico. Além disso, já viveu e conheceu muito. «Tivesse eu a sapiência desse senhor e não leria nem mais um livro», dir-me-ia o Zé Carlos. Por muito idealista que seja, vejo-me, por vezes, obrigado a concordar com o imberbe. A literatura, com o passar dos anos, passa a ser pensada em vez de lida, recordada em vez de memorizada, dita em vez de escrita. Tudo tem o seu tempo, principalmente a época da fanfarronice.

O óbvio: Bichos é um livro onde se conta a história de vários animais que, por serem inferiores ao Homem, ganham o nome de bichos. Nero, homónimo do imperador, nunca chega a ultrapassar a sua condição de cachorro. Mago, o gato, não consegue perceber o real alcance do seu mágico nome. Tenório, o galo, muito «Cá-que-rá-cá» faz mas não atinge o poder de macho. O medo controla-o. Enfim, todas as personagens animalescas desta pequena obra são sempre remetidas para a sua condição inferior. São maltratadas por um homem ainda menos racional que os bichos que aterroriza. Miura, o touro, é posto no meio de uma tourada e nunca percebe o que se passa à sua volta. Só sabe que tem de perseguir o manequim de lantejoulas, o toureiro. No entanto, a dor supera-o sempre. Vejamos: «Subitamente, abriu-se-lhe sobre o dorso um alçapão, e uma ferroada fina, funda, entrou-lhe na carne viva. Cerrou os dentes, e arqueou-se. Num ímpeto.» Uma engraçada estória de alienação mental está ligada à personagem do Senhor Nicolau, uma das únicas figuras humanas a serem figura central de uma narrativa: «As nações desabavam, sucediam-se guerras, a própria aldeia oscilava nos gonzos. Mas o senhor Nicolau alheio às paixões humanas, continuava a povoar os dias de libélulas e borboletas.»

Apesar de tudo, Bichos, no meio do seu belo discurso rural e anedótico, conhecido para quem conhece o modo de funcionamento da aldeia, consegue formar, na sua essência, um hino à liberdade. A espiritualidade está quase sempre presente nas mentes destes seres humanizados. Vicente, o corvo, não se resignando por estar fechado há quarenta dias nas arca de Noé, não se sentindo culpado pelas fornicações humanas, foge. É perseguido e castigado. Mas nunca desiste de ser livre, de se livrar da condenação terrena. Deus bem o quer castigar por ter fugido a Noé, mas Vicente não aceita a derrota. «Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.» Se este livro não tivesse sido escrito em 1940, diria que Papillon e Vicente eram irmãos. Mas Torga, o criador deste último, nunca escreveria «bastards».

[Paulo Ferreira]

De aplaudir

O regresso de valter hugo mãe à Casa de Osso.

[Paulo Ferreira]

sexta-feira, setembro 08, 2006

Finais

O Independente (1988-2006) teve a sua morte oficial na semana passada. Para uma pessoa de vinte e poucos anos como eu, pouco interessa que um jornal enfadonho e desnecessário chegue ao seu fim. Ora,o referido semanário era um tédio. Despender o meu (escasso) dinheiro europeu em algumas páginas supérfluas, sempre me pareceu mal. Por conseguinte, poucas vezes comprei o rival do espesso Expresso. Refira-se, porém, que O Independente nem sempre foi o sofrimento que se viu. Houve Vasco Pulido Valente, Paulo Portas, Miguel Esteves Cardoso. Houve a colecção Horas Extraordinárias. Houve Pedro Mexia (pela simpatia), Pedro Lomba. Houve Rui Ramos, Vasco Rato e Luciano Amaral. Enfim, houve muita gente que, à custa do seu esforço e talento, conseguiu fazer d’ O Independente um jornal que dava prazer (intelectual) ao leitor. Mas esse jornal acabou. Acabou. Diz-se que tudo tem a sua morte num dado ano. O Independente não morreu em 2006. Nem em 2005. Talvez em 2004 ou 2003. Talvez.

[Paulo Ferreira]

segunda-feira, setembro 04, 2006

Senhor doutor

Estive um mês no Garden State e vim às pressas para ver e ouvir o sr. dr. António Fiúza falar com os srs. da televisão sobre o sr. dr. Macieirinha. Mas logo perdi a fiúza toda.

[Paulo Ferreira]

A dama do pé de cabra

O historiador britânico Paul Johnson, em A History of the American People (1997), refere que Franklin Delano Roosevelt era um homem deveras necessitado de carinho maternal. Infelizmente, refere ainda Johnson, Eleanor Roosevelt não era mulher para dar ao presidente esse dito carinho, uma vez que a sua libido estava virada para outros homens e para outras mulheres, menos ocupadas do que o seu marido. Era, portanto, bissexual, a companheira de F.D.Roosevelt. Mas isto não interessa nada para a história. O que interessa - e preocupa - é a falta de carinho do presidente. E a benevolência para com Stalin.



[Paulo Ferreira]

domingo, setembro 03, 2006

O meu amigo Eça

Quem já viu o «programa sobre livros» (como disse?) de Bárbara Guimarães na SIC Notícias já terá notado, certamente, que aquele é um dos locais onde mais frequentemente se pode encontrar o irritante hábito de tratar os livros por tu. Talvez por isso o programa seja saturante e monótono, por ser um fundo poço de frases impessoais como: sempre vivi com os livros; escrever é uma necessidade como respirar; gosto muito, desde pequenino. Para além disso, e o mais mesquinho de tudo, é tratar os autores (clássicos ou contemporâneos) como se fossem o vizinho do 4º esquerdo. «A» Sophia, «o» Pessoa, «o» Camilo e «o» Eça.

É, precisamente, por ter visto umas quantas vezes o programa de Bárbara Guimarães (que, apesar de ler romances tristes com aquele sorriso sempre aberto e de ter casado com o dr. Carrilho, também merece ser vista) que eu já sonhei que era convidado para esse programa para falar de livros. A conversa seria qualquer coisa como isto:
-Boa noite, João.
-Boa tarde, Bárbara.
-Sei que tem um profundo amor aos livros.
-Uma paixoneta, vá lá.
-É por isso que refere os livros como a sua maior fonte de aprendizagem na vida?
-Não.
-Respirar, viver, dormir, sentir. A seguir vem o acto de ler?
-Vem antes.
-É portanto o momento mais importante dos seus dias...
-Não. Escrevo quando não tenho mais nada que fazer ou nada para ler.
-Escolheu um livro de referência. «Servidão Humana».
-De Somerset Maugham.
-É um livro com um olhar muito frio sobre a vida de um homem.
-Não, é mais um livro sobre um corno crónico.
-Uma sua outra referência é, disse há dias, um livro de Jack London.
-Exacto.
-É um escritor problemático. Um homem perturbado pelas questões mais básicas da humanidade.
-É um bêbado.
-Realçaria um episódio elementar para a compreensão desse autor e da sua obra?
-Sim, um em que o Jack London apanha uma cadela e se atira à água para se suicidar. Com o impacto na água, desperta e arrepende-se.
-Ah ah ah, hm hm hmm. Um episódio hilariante, sem dúvida. Jack London é, portanto, um ícone.
-Não, é um bêbado.
-Na poesia portuguesa destacou Vasco Graça Moura como um poeta subvalorizado.
-Sim, vendo-o na vida política esquecem o excelente poeta.
-Traz à memória a ideia do «fingidor», de Pessoa.
-Não traz não.
-Gosta de Pessoa?
-Muito.
-Defina-o.
-É um bêbado.
-E da poesia da Sophia, não gosta?
-A Sofia nunca me disse que escrevia.
-Sophia de Mello Breyner?
-Ah sim. Pensei que era outra Sofia, uma assim meio... Não. A poetisa respeito imenso.
-Boa noite, João.
-Até amanhã.

[João Carlos Silva]

Ver e ouvir



Rubem Fonseca & Johnny Cash

[João Carlos Silva]

sexta-feira, setembro 01, 2006