quarta-feira, abril 09, 2008

Lampedusa



O Leopardo é um romance representativo de uma época, mas não o considero marcante do ponto de vista literário. Muitas foram as vezes em que me perdia na leitura e me distraía do próprio enredo, desinteressante e aborrecido. Mas, independentemente desta sensação, há uma coerência que, podendo ou não ser deliberada, está lá: há uma ligação entre o ritmo do texto e o tenue pulsar de uma aristocracia moribunda que é retratada nesta obra como em nenhuma outra obra. Tal como diz Don Fabrizio no livro, que é «um representante da velha classe, inevitavelmente comprometido com o regime dos Bourbon, e a ele ligado pelos laços da decência, já para não falar dos laços de afecto. Pertenço a uma geração desafortunada que assiste ao final dos velhos tempos e ao início dos novos, e que tanto nuns como noutros se sente deslocada».

O livro (único, aliás) de Giuseppe Tomasi di Lampedusa é, sobretudo, uma obra que marca a resistência dos velhos tempos à mudança e à «modernidade». Não uma resistência enérgica e proselitista, mas uma fechamento da aristocracia sobre si mesma, passando a viver do poder sem representação, do património sem dinheiro, como metáfora da sua real utilidade e importância para o «choque garibaldino» que uma República liberal oferecia aos italianos. Tal como muitas vezes no livro, as personagens olham para os tectos, para as paredes dos seus palácios e palacetes e vêem representações da sociedade que os rodeia. O exemplo mais flagrante do «fim dos tempos» desta aristocracia vem mais para o fim do livro, num momento de viragem, num vaticínio, num mau agoiro: «No tecto, os deuses, reclinados em tronos dourados, olhavam para baixo sorridentes e inexoráveis como o céu de Verão. Julgavam-se eternos; em 1943 uma bomba fabricada em Pitzburg, Pensilvânia, iria provar-lhes o contrário».

A obra de Lampedusa é, sem dúvida, um livro aborrecido. Não nos identificamos necessariamente com estas personagens, com esta aristocracia defunta (já estavam mortos mas ainda não sabiam). Mas é um livro essencial na literatura italiana e europeia. É um romance sobre as fundações do mundo moderno e, mais importante que tudo, sobre o fim de uma outra Europa, de uma outra Itália. Uma faísca de mudança numa aristocracia monótona, como, aliás, também o foi a vida de Lampedusa, que Javier Marías considera um homem igualmente monótono e sozinho, vida na qual O Leopardo, segundo as palavras do escritor espanhol, «foi a única coisa extraordinária que aconteceu na sua vida, e na relaidade aconteceu na sua morte, dezaseis meses depois de ter deixado este mundo».

Numa nota adicional, refira-se o capítulo sobre Lampedusa em Vidas Escritas, de Marias. Se se é leitor compulsivo, não se pode deixar de simpatizar com este homem que, sem ocupação, saía de casa de manhã e lia, lia e lia durante todo o dia, seja num jardim, num café ou num degrau de casa. Saía com um malão sempre cheio de livros (vício com o qual, para minha infelicidade e esforço físico, irremediavelmente me identifico), por medo de ficar sem leitura longe de casa. O maior elogio aos «dotes de leitor» de Lampedusa vem de Marías: «Não só tinha lido todos os autores importantes ou imprescindíveis mas também os de segundo plano e os medíocres, que, sobretudo no que respeita ao romance, considerava tão necessários como os grandes: "Também é preciso sabermos aborrecer-nos", dizia, e lia, com interesse e paciência, a má literatura».

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