One of the pleasures of late-Victorian campaigning was that steamships and railways made it possible to attend even the empire's remoter battlefields, then return to one's London chambers for a haircut and a visit to one's tailor before the next bout.
Max Hastings, Warriors
terça-feira, abril 29, 2008
segunda-feira, abril 28, 2008
Bamboozled
De Spike Lee, Bamboozled é um filme interessante. O conceito do filme e o do «filme dentro do filme» são criativos, mas este é, como muitos outros, um exercício sobre as tensões raciais nos EUA. Para Spike Lee, os negros estão sempre sob fogo cruzado da polícia, da elite branca (dos «WASP»), da televisão, do poder e da classe média. Não será, provavelmente, mentira, mas o tom de Spike Lee acerca disto soa-me sempre que é exacerbado. Não é o Do the Right Thing (1989), mas vale a pena ver, nem que seja pelo balanço final do filme, que resulta num exercício de reflexão útil e numa quase fábula moral da «comunidade negra», numa sátira que não deixa de visar os próprios negros americanos e a imagem que muitos destes produzem e reproduzem de si mesmos.
quinta-feira, abril 24, 2008
Camus
Qual o homem que nunca quis ser como Camus? É a «estrela de futebol» do universo dos escritores (curiosamente, é-o mesmo, tendo jogado futebol amador em Argel, na posição de guarda-redes... e bom, segundo parece), motivo de uma inveja respeitosa por parte de todos os potenciais escritores. Qual o homem que, ao pegar na caneta, nunca quis ser como Camus? Cigarro ao canto da boca, gola levantada, charme magneticamente chamador de mulheres bonitas, existencialista moderado e racional. Os seus romances misturam-se com as temáticas de Dostoiévski, o absurdo cómico-trágico da suas personagens confundem-nos e passam para a nossa visão das coisas. Mersault não sofre menos incompreensão que Joseph K., é certo. Camus, ainda por cima, era um homem de causas. Legítimas, ao que parece. Anti-guerra, mas com reflexão, sem fome de fama. Quem nunca quis ser como Camus? Sartre, pelo que se sabe, queria ser como ele, e mordia-se por dentro por essa razão. Sinceramente, se eu fosse Jean-Paul Sartre, preferiria ser como Camus, verdade seja dita. Equilibrar a caneta numa mão e o cigarro noutra, eis uma verdade que o homem legou a gerações de escritores empenhados.
Fuga ao anonimato
Alguns dos meus bons criminosos tinham, de resto, ao matar, obedecido ao mesmo sentimento. A leitura dos jornais, na lastimosa situação em que se encontravam, trazia-lhes, sem dúvida, uma espécie de triste compensação. como muitos outros homens, eles já não podiam com o anonimato, e esta impaciência tinha podido, em parte, levá-los a difíceis extremos. Para alguém se tornar conhecido, basta, em suma, matar a porteira. Trata-se, infelizmente, de uma reputação efémera, tantas são as porteiras que merecem e recebem as facadas.
Albert Camus, A Queda
Albert Camus, A Queda
Warriors
Em Warriors, Max Hastings traz-nos um retrato de homens e mulheres em guerra. Tanto podem ser militares de carreira, como pessoas «arrastadas» para o conflito pela força das circunstâncias. O objectivo é narrar, como o próprio subtítulo indica, Extraordinary Tales from the Battlefield. No entanto, não se julgue que todas são personagens apaixonantes. Algumas serão falhadas, irracionais, azaradas ou politicamente subservientes. Mas todas trazem algo comum: coragem debaixo de fogo. E isto Hastings sublinha: «No warrior should be promoted to higher command merely because he is brave. A skilled and eager fighter is best rewarded by decorations rather than promotion. He should be retained in a role in which he can make himself useful in personal combat, rather than advanced beyond the merits of the rater limited gift - even for a soldier - of being good at killing people». Ou seja, um «guerreiro de coragem» não resulta, necessariamente, num bom comandante - pelo contrário, normalmente resulta num líder irracional, insensível a esse medo tão normal e compreensível: o medo de morrer.
O primeiro desses retratos é o do Barão Marcellin de Marbot, jovem comandante napoleónico que participou em campanhas desde Portugal à Rússia. Combatente valoroso, fazia-se aos adversários com a ferocidade típica de um militar de carreira inspirado por grandes campanhas. A quase misoginia era um atributo comum: «men such as Marbot became so absorbed in the business of war that they perceived women merely as a source of amusement during leaves, and as childbearers when duty granted an officer leisure to think of such marginal matters as procreation». Marbot atirou-se ao rio, inclusivamente, para salvar inimigos russos, que agitavam a bandeira branca da rendição. E isto diz muito do homem, apesar de militar nas fileiras imperiais. A ética militar não foi suplantada pela vertigem conquistadora de Bonaparte. E, de facto, em muitas alturas Marbot parece não ter sido totalmente cegado por esta, já que diversas vezes discordou do imperador e duvidou dos grandes generais napoleónicos. No entanto, quando a batalha contra ingleses, austríacos e russos chamou, lá foi o Barão.
Menos misógina é a história de Harry Smith e Juana. O brigadeiro das 95th Rifles esteve também em diversos palcos desde América do Sul aos conflitos napoleónicos, inclusivamente no sangrento cerco de Badajoz (1812) e em Waterloo. Combatera, curiosamente, contra Marbot, se bem que seja impossível saber se alguma vez se encontraram fisicamente, frente a frente, no campo de batalha. Mas numa coisa vencera Marbot: acima da vitória militar, estava a sua dedicação a Juana, jovem espanhola que perdera a família em Badajoz com a sua irmã mais velha e que agora procurava clemência. Os oficiais ingleses, ao contrário da sua infantaria - selvagem e destruidora como quase sempre as infantarias em guerra são -, foram sensíveis a isto e acederam ao pedido. Harry Smith foi mais longe, apaixonou-se por Juana, que tinha então 14 anos. A beleza da rapariga foi sublinhada por um camarada de armas de Smith, Johnny Kincaid, se bem que esta não seja comprovada senão por alguns relatos e um retrato incluído na autobiografia de Smith. Um ponto a favor de Hastings: a reflexão acerca do «amor» de Juana por Harry Smith. Até que ponto não seria uma relação maternal retribuída com aquela dedicação? Juana passou uma vida inteira dedicada ao brigadeiro das 95th, mas na sua origem esteve uma paixão dedicada a um oficial que a poderia salvar da ruína completa e mesmo da morte. Assim que se juntou a Smith, foi inclusivamente excomungada da sua cultura católica espanhola, que nunca aceitaria de volta uma mulher que tivesse casado com um herético anglicano. O medo de Juana de perder Harry era, muitas vezes, igualmente, o medo de perder a sua própria vida. Dizer que Juana vivia para Harry Smith era dizer isso mesmo: a «vida dela» era ele.
O primeiro desses retratos é o do Barão Marcellin de Marbot, jovem comandante napoleónico que participou em campanhas desde Portugal à Rússia. Combatente valoroso, fazia-se aos adversários com a ferocidade típica de um militar de carreira inspirado por grandes campanhas. A quase misoginia era um atributo comum: «men such as Marbot became so absorbed in the business of war that they perceived women merely as a source of amusement during leaves, and as childbearers when duty granted an officer leisure to think of such marginal matters as procreation». Marbot atirou-se ao rio, inclusivamente, para salvar inimigos russos, que agitavam a bandeira branca da rendição. E isto diz muito do homem, apesar de militar nas fileiras imperiais. A ética militar não foi suplantada pela vertigem conquistadora de Bonaparte. E, de facto, em muitas alturas Marbot parece não ter sido totalmente cegado por esta, já que diversas vezes discordou do imperador e duvidou dos grandes generais napoleónicos. No entanto, quando a batalha contra ingleses, austríacos e russos chamou, lá foi o Barão.
Menos misógina é a história de Harry Smith e Juana. O brigadeiro das 95th Rifles esteve também em diversos palcos desde América do Sul aos conflitos napoleónicos, inclusivamente no sangrento cerco de Badajoz (1812) e em Waterloo. Combatera, curiosamente, contra Marbot, se bem que seja impossível saber se alguma vez se encontraram fisicamente, frente a frente, no campo de batalha. Mas numa coisa vencera Marbot: acima da vitória militar, estava a sua dedicação a Juana, jovem espanhola que perdera a família em Badajoz com a sua irmã mais velha e que agora procurava clemência. Os oficiais ingleses, ao contrário da sua infantaria - selvagem e destruidora como quase sempre as infantarias em guerra são -, foram sensíveis a isto e acederam ao pedido. Harry Smith foi mais longe, apaixonou-se por Juana, que tinha então 14 anos. A beleza da rapariga foi sublinhada por um camarada de armas de Smith, Johnny Kincaid, se bem que esta não seja comprovada senão por alguns relatos e um retrato incluído na autobiografia de Smith. Um ponto a favor de Hastings: a reflexão acerca do «amor» de Juana por Harry Smith. Até que ponto não seria uma relação maternal retribuída com aquela dedicação? Juana passou uma vida inteira dedicada ao brigadeiro das 95th, mas na sua origem esteve uma paixão dedicada a um oficial que a poderia salvar da ruína completa e mesmo da morte. Assim que se juntou a Smith, foi inclusivamente excomungada da sua cultura católica espanhola, que nunca aceitaria de volta uma mulher que tivesse casado com um herético anglicano. O medo de Juana de perder Harry era, muitas vezes, igualmente, o medo de perder a sua própria vida. Dizer que Juana vivia para Harry Smith era dizer isso mesmo: a «vida dela» era ele.
terça-feira, abril 22, 2008
Lucky Number Slevin
Excelente filme, este realizado em 2006 por Paul McGuigan, com argumento de Jason Smilovic. Corre o risco de ser um filme algo «caricato», tal como Snatch (que é o parente mais próximo, na minha opinião) mas com mais elegância, se bem que este aspecto algo cómico, por vezes, mais não é que uma maneira de atenuar alguma violência. E a violência é a chave do filme, não como violência gratuita (nada do gore que os discípulos de Tarantino por vezes deixam entrar nos filmes) mas sim como a forma que reveste os twists do enredo. Lucky Number Slevin é uma excelente história, bonita mas pessimista, esperançosa mas carregada de destino, de hubris. Uma das frases essenciais é o desejo, de The Boss (Morgan Freeman), de reviver uma lex talionis, uma lei da retribuição - retribuição essa que, no entanto, não vai no sentido que The Boss quer.
Slevin Kelevra (Josh Hartnett, em mais uma excelente interpretação de uma das minhas apostas para o futuro de Hollywood), Mr. Goodkat (Bruce Willis), The Rabbi (Ben Kingsley), Lindsey (a bela Lucy Liu) e o detective Brikowski (Stanley Tucci) são as personagens mais visíveis de um longo elenco de um grande filme que merece ser visto mais que uma vez. Cheguei a ver as cenas cortadas, apenas para apanhar algumas «franjas» subestimadas do filme. Surpreendentemente bom. Para não estragar o enredo, deixo o repto simples: vejam Lucky Number Slevin. Não se arrependem.
sábado, abril 19, 2008
Notas sobre a barbárie
De tanto afirmá-lo e de tanto tratar os judeus como animais, os prisioneiros judeus na Segunda Guerra Mundial tornaram-se, de facto, animais. Seres cujo único intento na vida é a sobrevivência, à custa da vida dos outros, à custa dos próprios familiares no campo - pesos mortos para os mais novos e mais saudáveis. Elie Wiesel e Primo Levi não esqueceram essa dimensão da Humanidade, não esqueceram o que nos podem fazer, que nos podem transformar, de facto, em animais sem qualquer escrúpulo.
A longa noite de Elie Wiesel
«Nunca mais esquecerei esta noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada». Embora esta não seja a primeira frase do livro de Elie Wiesel, Noite, bem que podia sê-la. Wiesel, judeu romeno, foi apanhado na vaga de deportações, juntamente com a sua família e muitos dos seus compatriotas (na sua grande maioria os judeus, tal como ele). As autoridades romenas, lideradas por Antonescu e pelos fascistas, cedo se juntaram à missão dos nazis. E é assim que os romenos são daí enviados para Auschwitz-Birkenau, Buna e, finalmente, Buchenwald, numa viagem de terror por alguns dos mais terríveis campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. Segundo diz, numa tenebrosa verdade, um outro prisioneiro de Auschwitz: «Tenho mais confiança em Hitler do que em qualquer outro. Foi o único que manteve as suas promessas, todas as suas promessas, ao povo judeu». Essas promessas eram promessas de morte.
O tema do livro é óbvio. A morte é, sem dúvida, o grande arrepio que atravessa o livro. Mas esta morte não é apenas uma morte física, um genocídio. A morte mais importante, mais grave, é aquela que se dá junto de cada um dos homens presos, uma morte da humanidade, da moral, da ética e de Deus. Como diz François Mauriac no prefácio a Noite: «a morte de Deus na alma daquela criança que descobre, de uma assentada, o mal absoluto». A figura mais representativa das interrogações judaicas é o Maceiro Moché, personagem que transmite estudos cabalísticos a Elie quando este entra na adolescência (nunca dela sai, aliás, já que tinha 16 anos quando foi libertado de Buchenwald). Moché explicava ao narrador «que cada pergunta possuía uma força que a resposta já não continha». Referia-se, claro, às perguntas que se dirigiam a Deus quando se deparavam com a crueldade nazi. «O homem interroga e Deus responde. Mas nós não compreendemos as Suas respostas. Não podemos compreendê-las. Porque elas vêm do fundo da alma e lá permanecem até à hora da morte. As verdadeiras respostas, Eliezer, só as encontrarás em ti mesmo», diz o velho. Moché, aliás, é simbolicamente o judeu «que escapou» e vem avisar os seus conterrâneos do que se passa nos campos. Ninguém quer acreditar nele. Ninguém lhe dá ouvidos, julgando-o louco. Mas Moché tinha razão.
Noite é um livro violento. Um romance que não é romance. Uma narrativa que não tem qualquer imagem bonita. Um enredo sem recompensa ou segredo. Só morte. Só brutalidade. Do princípio ao fim do livro. As cenas mais terríveis são, seguramente, as do crematório, e especialmente as de carrinhas cheias de pequenos cadáveres de crianças atiradas às chamas. Elie Wiesel diz sobre isto o que todos nós diríamos: «Nunca mais esquecerei aquele fumo. Nunca mais esquecerei as pequeninas caras das crianças cujos corpos eu tinha visto transformarem-se em espirais sob um azul mudo. Nunca mais esquecerei estas chamas que consumiram para sempre a minha fé». O mesmo quando é enforcada uma criança no campo, que, pela sua leveza, não morre de imediato e se debate na ponta da corda durante meia hora. Elie e os outros prisioneiros são obrigados a assistir, para desobedecer mais: «Atrás de mim, ouvi o mesmo homem perguntar: - Onde é que Deus está, então? E eu sentia dentro de mim uma voz que lhe respondia: - Onde é que ele está? Ei-lo - está aqui pendurado nesta forca... Naquela noite, a sopa sabia a cadáver...». Afinal, Deus pode morrer. Foi assim que morreu o Deus de Wiesel.
sexta-feira, abril 18, 2008
I knew it!
«I knew it!», diz a cunhada. Alguém já reparou que John Cheever, escritor americano que escreveu Falconer (traduzido, aliás, para português pela Sextante Editora), é, em Seinfeld, o escritor que relembra noites escaldantes numa cabana dedicando «escandalosas» cartas de amor ao pai da Susan, noiva do George Costanza?
quinta-feira, abril 17, 2008
Election
Há já uns meses, tinha apanhado o filme no canal Hollywood. Um liceu como cenário, Reese Whiterspoon a fazer de menina mimada, um actor (Chris Klein) saído do boçal American Pie (filme que, apesar de tudo, aprendi a respeitar), mais uma personagem martirizada de Matthew Broderick, enfim, tudo o que parecia ser um filme sobre liceus americanos. Passados alguns minutos de má vontade minha, mudei de canal para nunca mais voltar.
Voltei lá, no entanto, há poucas semanas. Sem querer, claro. Apanhei o início. O filme chamava-se Election (realizado em 1999). Só aos poucos fui percebendo que era o mesmo que tinha apanhado cerca de um mês antes. Outros olhos o viram. Até mesmo Broderick, actor com o qual não vou à bola, me pareceu ter profundidade. Comecei a gostar da personagem dele. Do filme também. Fiquei a saber também que o realizador é Alexander Payne, e então tudo começou a encaixar-se. Para quem viu About Schmidt e Sideways, a personagem de Broderick faz todo o sentido.
Jim McAllister, tal como Warren Schmidt (Jack Nicholson), Miles (Paul Giamatti) e Jack (Thomas Haden Church), é um homem em queda. Jim tem uma vida pacata e controlada, e é o quebrar dessa normalidade que o leva a uma completa mudança. Tal como a viagem de Miles e Jack e a outra «viagem espiritual» de Schmidt, a «viagem» de Jim é, precisamente, querer «endireitar» as coisas à sua maneira. Pode mudar um pouquinho o seu dia-a-dia e fazer justiça, mas os pequenos actos acabam levando a consequências catastróficas, seja com os resultados das eleições da escola, seja com o seu casamento.
É este efeito de «bola de neve», de como os pequeninos delitos (misdemeanors) se podem transformar em pecados que nos perseguem uma vida inteira, que arrasta Jim McAllister ao longo do filme. Alexander Payne, tal como voltou a fazer nos filmes seguintes, trata este tema com a maior subtileza, com o cuidado de não deixar descambar para a tragédia de levar às lágrimas, mas sim para os filmes tragicómicos que, estranhamente, nos deixam sempre a reflectir acerca da vida. A questão em Election é: afinal, acabamos sempre por ser apanhados ou não? É ver o filme.
quarta-feira, abril 16, 2008
Os «santos privilégios» dos dirigentes republicanos
Convém (...) sublinhar que, apesar da fraseologia plebeia e igualitária dominante de todos os partidos ou grupos republicanos, só a Carbonária Portuguesa se pareceu com uma autêntica organização popular. No PRP e, a seguir, no Partido Democrático de Afonso Costa, os dirigentes e os militantes não provinham dos mesmos grupos sociais: e, se os dirigentes estavam dispostos a usar os militantes para os seus próprios fins, não estavam, evidentemente, dispostos a permitir que se pusessem em causa os seus santos privilégios.
Vasco Pulido Valente, O Poder e o Povo (A Revolução de 1910)
quarta-feira, abril 09, 2008
Lampedusa
O Leopardo é um romance representativo de uma época, mas não o considero marcante do ponto de vista literário. Muitas foram as vezes em que me perdia na leitura e me distraía do próprio enredo, desinteressante e aborrecido. Mas, independentemente desta sensação, há uma coerência que, podendo ou não ser deliberada, está lá: há uma ligação entre o ritmo do texto e o tenue pulsar de uma aristocracia moribunda que é retratada nesta obra como em nenhuma outra obra. Tal como diz Don Fabrizio no livro, que é «um representante da velha classe, inevitavelmente comprometido com o regime dos Bourbon, e a ele ligado pelos laços da decência, já para não falar dos laços de afecto. Pertenço a uma geração desafortunada que assiste ao final dos velhos tempos e ao início dos novos, e que tanto nuns como noutros se sente deslocada».
O livro (único, aliás) de Giuseppe Tomasi di Lampedusa é, sobretudo, uma obra que marca a resistência dos velhos tempos à mudança e à «modernidade». Não uma resistência enérgica e proselitista, mas uma fechamento da aristocracia sobre si mesma, passando a viver do poder sem representação, do património sem dinheiro, como metáfora da sua real utilidade e importância para o «choque garibaldino» que uma República liberal oferecia aos italianos. Tal como muitas vezes no livro, as personagens olham para os tectos, para as paredes dos seus palácios e palacetes e vêem representações da sociedade que os rodeia. O exemplo mais flagrante do «fim dos tempos» desta aristocracia vem mais para o fim do livro, num momento de viragem, num vaticínio, num mau agoiro: «No tecto, os deuses, reclinados em tronos dourados, olhavam para baixo sorridentes e inexoráveis como o céu de Verão. Julgavam-se eternos; em 1943 uma bomba fabricada em Pitzburg, Pensilvânia, iria provar-lhes o contrário».
A obra de Lampedusa é, sem dúvida, um livro aborrecido. Não nos identificamos necessariamente com estas personagens, com esta aristocracia defunta (já estavam mortos mas ainda não sabiam). Mas é um livro essencial na literatura italiana e europeia. É um romance sobre as fundações do mundo moderno e, mais importante que tudo, sobre o fim de uma outra Europa, de uma outra Itália. Uma faísca de mudança numa aristocracia monótona, como, aliás, também o foi a vida de Lampedusa, que Javier Marías considera um homem igualmente monótono e sozinho, vida na qual O Leopardo, segundo as palavras do escritor espanhol, «foi a única coisa extraordinária que aconteceu na sua vida, e na relaidade aconteceu na sua morte, dezaseis meses depois de ter deixado este mundo».
Numa nota adicional, refira-se o capítulo sobre Lampedusa em Vidas Escritas, de Marias. Se se é leitor compulsivo, não se pode deixar de simpatizar com este homem que, sem ocupação, saía de casa de manhã e lia, lia e lia durante todo o dia, seja num jardim, num café ou num degrau de casa. Saía com um malão sempre cheio de livros (vício com o qual, para minha infelicidade e esforço físico, irremediavelmente me identifico), por medo de ficar sem leitura longe de casa. O maior elogio aos «dotes de leitor» de Lampedusa vem de Marías: «Não só tinha lido todos os autores importantes ou imprescindíveis mas também os de segundo plano e os medíocres, que, sobretudo no que respeita ao romance, considerava tão necessários como os grandes: "Também é preciso sabermos aborrecer-nos", dizia, e lia, com interesse e paciência, a má literatura».
Definhar
Não sei falar sobre isso mas parece que estamos mais ou menos programados para parar. Quer dizer, para morrer. O corpo e o juízo querem paz e não há mais nada que consiga maravilhar. Dores espalhadas pelo corpo, doença crónica, limitações na alimentação, no movimento, ouve-se mal, vê-se pior, socializar torna-se desinteressante. Acho que chega a altura do cansaço e parar assoma com naturalidade. Ontem uma velha dizia para a vizinha, enquanto cavava à beira da estrada na Aldeia do Futuro, concelho de Grândola, «parar é morrer». Ainda não ligamos a esses ditos de velhos. Eu próprio noto as pequenas alterações que o meu corpo sofre. Depois de um dia de trabalho (longo) o meu corpo cheira pior do que há cinco anos. Mesmo com a farsa necessária dos cosméticos o meu corpo começa paulatinamente a apodrecer.
Samuel Filipe, no Esse Cavalheiro
Samuel Filipe, no Esse Cavalheiro
sábado, abril 05, 2008
Vulcano
Tranquilizado, penteou-se, mandou que o calçassem e lhe vestissem a sobrecasaca. Meteu o jornal numa gaveta. Eram quase horas do Rosário, mas o salão ainda estava vazio. Sentou-se num sofá e enquanto esperava, reparou que o Vulcano do tecto se parecia um pouco com as litografias de Garibaldi que vira em Turim. Sorriu. «Um cornudo».
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo
quarta-feira, abril 02, 2008
terça-feira, abril 01, 2008
Fidel Neeson
Pela espada
Segundo a condessa de Mangualde, que falou com ele na própria manhã em que Couceiro se insurgiu no Porto, Aires D'Ornelas comentou: «É a tal coisa! O Couceiro quer tudo à ponta da espada, quando isto pela política ia muito bem!»
Vasco Pulido Valente, Um Herói Português - Henrique Paiva Couceiro (1861-1944)
Vasco Pulido Valente, Um Herói Português - Henrique Paiva Couceiro (1861-1944)
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