terça-feira, fevereiro 06, 2007

The Departed



Para ver The Departed, tive de esquecer os filmes streetwise/gangster italo-americanos de Scorsese. Neste filme já sabia que não ia encontrar o humor de Goodfellas, Casino ou até mesmo o dramático humor de Raging Bull (todos rimos da micro-tragédia). Aliás, lembro-me de ter lido Nuno Markl dizer que não há diálogos que cheguem à genialidade dos de Pesci, ou de uma personagem como Pesci. O facto é que já há muito que tenho saudades de ver Joe Pesci num filme de Martin Scorsese. Com todo o respeito pelos actores que por aí há, já não se fazem «Joe Pescis» como os do Antigamente.

Mas The Departed é um excelente filme, ainda assim, de Scorsese. Regressaram certos contornos de qualidade que definiam Scorsese e o destacavam dos outros. The Aviator já fora, para mim, um filme memorável. Com muitas imperfeições, mas com o recuperar de um know-how de esculpir personagens, Scorsese fez do Hughes de Di Caprio um ícone que memorizei, tal como Jake La Motta (Raging Bull) se me havia tornado um verdadeiro paradigma moral de quando é preciso ser abrutalhado e néscio. Mas The Departed, parece-me, recupera um outro exemplo ainda mais flagrante, uma divisão narrativa que tem muito de The Colour of Money: mesma história, duas personagens, dois pontos de equilíbrio numa mesma narrativa - sobretudo, dois possíveis vencedores na história.

Assim, o filme de Scorsese é excelente, que vale sobretudo pelos twists na história e pelas personalidades perturbadas (a ter em conta o facto de Jack Nicholson ser realmente assustador e imprevisível enquanto «Frank Costello»), pelo sublinhar das notáveis abordagens de Scorsese ao mundo do crime e ao complexo mundo moral que aí existe.

Por fim, uma nota importantíssima em relação aos «1001 modos de morrer» a que Martin Scorsese me habituou: se no Casino Joe Pesci é enterrado vivo e em Bringing out the Dead há um desfile de tragédias, se em Boxcar Bertha há crucificações tão realistas e violentas como em Last Temptation of Christ (que Ele me perdoe), em The Departed temos um rol de momentos novos no filme em que o sangue gela. Têm o exemplo da bala que uma das personagens encontra à saída do elevador e que é um verdadeiro «end of story», um comovente mas muito rápido, sem tempo de digerir, despertador para quem (haverá alguém que o faça?!) estiver mais desatento ao filme, tal como Pesci se sumia de um segundo para o outro em Goodfellas. Embora neste caso (em Departed) esse sumiço aconteça no fim, uma pessoa sente muito a falta deste e de Pesci nos filmes. Não sei como Scorsese faz isso, mas é notável. E mais notável ainda é que o coração quase me parou (literalmente) quando o som parou e outra das personagens surgiu, em câmara lenta, a espernear no écrã enquanto caía de um prédio e se desfazia em sangue no chão, sendo para mim, talvez, a cena marcante do filme, o verdadeiro ponto de viragem que tem, portanto, uma cena a condizer: uma pessoa sabe que a história ali vai mudar, vai ter uma intensidade maior.

Teremos de esperar, no mínimo dos mínimos, uns cinco anos para ver se este filme pegou. Apesar de ser um filme brilhante, não acho que me fique na memória como outros de Scorsese, e até mesmo The Aviator me marcou por uns bons anos, mesmo não tendo o brilhantismo cinematográfico de The Departed. O que significa que mesmo os génios (e Scorsese é o meu génio no cinema, o meu realizador) não significam filmes memoráveis. É um filmalhão, mas algo me diz que com o próximo de Scorsese este passará um pouco ao esquecimento. É esperar uns anos, e ver o que cá ficou.

[João Carlos Silva]

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