Há umas décadas, construíam-se romances que tinham como base o fervor partidário da URSS. As santas palavras dos senhores de Moscovo eram consideradas leis feitas pela natureza. A exploração, as classes e o Estado deveriam deixar de existir. A burguesia teria que dar lugar à ditadura do proletariado e, depois, ao Comunismo com letra maiúscula. A centralização era importante. O mundo precisava de uma ordem, de uma organização, de uma liderança. Os partidos comunistas deste mundo aqui estavam para garantir tudo isso.
O neo-realismo viveu dentro dessa esfera comunista. A vontade de salvar o planeta era realmente forte. Tanto que a literatura desses autores chamados neo-realistas era, na sua grande maioria, escassa em termos de qualidade. A Fernando Namora, por exemplo, apenas faltou dizer que na América se comiam criancinhas ao lanche. Outros autores seguiram este caminho «vermelho» e, como resultado de um enorme empenhamento sentimental, escreveram livros com martelos nas mãos, em vez de usarem esbeltas e inteligentes canetas. Infelizmente, o neo-realismo passou-se desse modo. Não admira, por isso, que um autor de excepção como Vergílio Ferreira, não se tenha sentido muito preso a essa corrente. Mudança (1949) marca o final de um ciclo e o começo de outro. Apelo da Noite (1963), livro que aqui pretendo abordar, mesmo que de forma breve, é um dos tijolos que o autor usou para construir a sua fama de existencialista. Adriano, personagem principal, vive cabisbaixo com os livros que escreveu, com as criticas que recebe, com a vida que não compreende. Sabe que há uma solidão que o inunda mas que não consegue explicar. Ao lado desta figura, estão os amigos. Os que criticam Malraux ao afirmarem que quem reflecte não ergue um dedo. Malraux, para os amigos, é fascista, não defende a «causa». A revolução, para esta gente, é o fim a atingir. Adriano, por seu lado, apesar de acompanhar os seus companheiros nas suas diatribes, não deixa de estar desencantado. Sabe que o mundo não deve ser salvo pelos homens. Provavelmente, Adriano, como todos os outros Adrianos de Vergílio Ferreira, encaixam na mentalidade do criador. Ou seja, encaixam no desencanto de um homem que conhece o medo do indivíduo de ficar a sós consigo, que sabe que o homem está reduzido a si próprio.
«Ultimamente sós em nós.» Esta é uma das melhores frases de Adriano. Os amigos limitam-se sempre a pensar coisas como esta: «O sacrifício do operário será a vitória total de amanhã.» Vergílio Ferreira, quando escreveu Apelo da Noite já não tinha o fervor de antigamente. Nota-se um certo escárnio nas aproximações do «herói» da narrativa à ideia de revolução, há um gozo notório em tudo o que diz respeito às ideias dos senhores da bolchevização. Mesmo assim, refira-se que o final da história é simbólico: perdido em si próprio, Adriano ajuda um dos seus companheiros de clandestinidade a fugir da prisão e morre aos tiros com a polícia, para defender os que estavam consigo. Estou inclinado a afirmar que esta morte nada tem que ver com a causa, com a ditadura do proletariado, mas sim com a vida, com a existência, que está perdida desde sempre. Não me parece que Adriano morra pelos outros.
Apelo da Noite, apesar de viver do comunismo e da clandestinidade, não se alimenta das ideias de Garaudy. Não. É um outro livro de mudança, de fuga para um novo trajecto, é um ex-marxismo.
[Paulo Ferreira]
segunda-feira, setembro 10, 2007
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