Alexander Soljenitsyne é, no Ocidente, vítima das apropriações e expropriações mais livres e arrojadas possíveis. Para uns, um traidor e um dissidente. Para outros, um mártir e um ídolo. Ambos se perdem na representação do homem e se esquecem de ler com atenção o que ele escreve e o que ele diz acerca das sociedades contemporâneas - em especial, a sua ideia de Rússia. Ou sejam, ambos estão errados, pelo menos nma boa parte.
Soljenitsyne era um dissidente, sim. Mas não um traidor. Embora já tivesse nascido «soviético», nunca deixou de ser um russo antes de tudo o resto, e o nacionalismo presente na retórica do PCUS não eram suficientes para patriotismo avassalador de Soljenitsyne, que acreditava numa Rússia maior do que o comunismo, maior do que qualquer ideologia ou objectivo, maior do que o próprio homem.
E aqui está uma das características que muitos, na sua ânsia de idealizar o «inimigo dos nossos inimigos», esqueceram: Soljentsyne acreditava na pátria acima do homem, como entidade espiritual imortal e etérea. Ou seja, era um mártir dos gulags, sem dúvida, mas não devia ser um ídolo para o comum dos ocidentais, confortável (e com razão) na sua sociedade de consumo. Soljenitsyne acreditava que era pelo espírito que o homem poderia encontrar a sua razão de ser e que o materialismo destruiria o homem - como, supostamente, na segunda metade do século XX já havia destruido o Ocidente.
Tenho dúvidas em afirmar, como a voz do consenso afirma, que Soljentsyne fosse um «verdadeiro liberal», ou mesmo um «herói da liberdade». O escritor tinha as suas razões para não gostar da URSS, que eram as mesmas que o Ocidente liberal tinha. Tinha a sua visão da decadência espiritual do Ocidente. E até tinha a sua razão quando dizia, em discursos em Harvard em 1978 (publicados, sugestivamente, com o título O Declínio da Coragem), que os países ocidentais, e em especial os EUA, compactuaram com o fortalecimento da União Soviética sob a batuta de Lenine. Mas Soljenitsyne também acreditava que a Mãe-Rússia, e um verdadeiro nacionalismo russo, seriam bons motivos para erguer um Estado com mão de ferro. Razões essas que, num acaso histórico, não encontrou na União Soviética.
A forma mais saudável de admirar um escritor é apreciar a sua obra escrita e respeitar a sua visão da história ou do seu tempo. Definitivamente, não é santificar um homem e dizer dele o que nós queremos que seja, e não o que ele é.
Sem comentários:
Enviar um comentário