terça-feira, julho 08, 2008
Haverá sangue
J.M. Coetzee. Tiro o chapéu a este homem.
E tiro, de forma generosa, o chapéu à «literatura africana». Num pequeno parêntesis, passo a explicar esta última expressão, deveras ambígua: África, como fica bem provado em Desgraça, de Coetzee, é um continente «quente», que ao longo dos tempos tem sido palco de revoluções, convulsões, tumultos e mudanças sociais e políticas intermináveis, logo, é o palco ideal para uma narrativa pela imprevisibilidade (mesmo nos dias que correm) do que pode acontecer a qualquer momento. A ficção neste continente, misturada com a liberdade de exploração da África profunda, tem, por isso, em si um mundo de possibilidades.
Desgraça, obra de J.M. Coetzee, surge um pouco dessa situação. Da situação de tensão racial na África do Sul, pátria de Coetzee e do próprio romance. É a tensão racial que, inesperadamente, sem antes se revelar, se vai cruzar com a história de David Lurie (a personagem principal, segundo alguns feita à imagem do autor), um professor branco na Universidade do Cabo que parte, já «em desgraça», para o campo, onde partilhará os seus dias com a filha Lucy. É nesta propriedade que se dará o clímax precoce mas terrível da obra, que muito deverá à tensão racial acima referida. David e Lucy terão as suas vidas completamente mudadas por um acontecimento hediondo.
O espírito da narrativa, aliás, fez-me lembrar, e muito, o filme de P.T. Anderson Haverá Sangue (There Will Be Blood). Não tanto pelo conteúdo, mas pela construção dos actos e consequências de Daniel Plainview, que nos levam necessariamente a levar à letra o título do filme: haverá sangue. E, à medida que se vai lendo Desgraça, é isso que se sente. Que a qualquer momento, num golpe terrível do destino, «haverá sangue». Embora não queira estragar a surpresa, a verdade é que, realmente, esse sangue é derramado.
Desgraça poderá não ser o melhor romance de J.M. Coetzee. Haverá, até, melhores escritores que o sul-africano e com temas e enredos bem mais abrangentes e over the top. Mas no que toca a literatura do final do século XX, poucos terão a capacidade de envolvência moral que este tem. E, para além da carga moral, também há a meticulosidade estrutural e técnica da trama, que claramente fecha o leitor numa jaula de curiosidade. Se há romances perfeitos, posso arriscar que Desgraça, de Coetzee, pode bem ser um deles.
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