Que é a fealdade,afinal, senão a alma a transparecer através da carne?
J.M. Coetzee, A Idade do Ferro
quinta-feira, julho 31, 2008
quarta-feira, julho 30, 2008
Psicologia vocacional
Inferno
Em certos dias que por aí têm passado, tenho pedido aos céus que me levem. O meu reino por um cavalo. A minha alma por um sopro de ar fresco que me salve de derreter. Porquê tanta gente com medo de ir parar ao Inferno, quando - paradoxalmente - adoram este calorzinho de fazer bater os dentes e não perdem uma oportunidade para esturricar deitados na areia com o corpinho ao léu? Ir para o Paraíso, escapando assim das chamas e dos graus centígrados do Inferno, devia estar reservado aos mais inaptos para sobreviver nesse destino dantesco dos pecadores. Uma lista de espera, como se faz para os candidatos a transplante, seria uma boa ideia.
Enquanto caminho pelas ruas debaixo deste sol infernal e a roupa se vai pegando ao meu corpo como uma nova pele, vou desatando a pensar em novas coisas para oferecer em troca de algo fresco. «Senhor, leva-me a alma e dá-me uma ventoinha portátil». «Não dou: alma muito herética», responde-me telegraficamente o velho. «Senhor, que maior prova queres da tua omnipotência se sobrevives fresco aí em cima tão perto do Sol?». «Senhor, dai-nos o Outono e leva o Al Gore para tapar o buraco do ozono», e ninguém responde. Pelo menos, vendo as notícias, vejo que não tenho resposta, já que o Al Gore até parece ter voltado à política. Vou tentar uma abordagem budista ou, quem sabe, islâmica. Pode ser que lá para Setembro já me chova na cabeça.
Enquanto caminho pelas ruas debaixo deste sol infernal e a roupa se vai pegando ao meu corpo como uma nova pele, vou desatando a pensar em novas coisas para oferecer em troca de algo fresco. «Senhor, leva-me a alma e dá-me uma ventoinha portátil». «Não dou: alma muito herética», responde-me telegraficamente o velho. «Senhor, que maior prova queres da tua omnipotência se sobrevives fresco aí em cima tão perto do Sol?». «Senhor, dai-nos o Outono e leva o Al Gore para tapar o buraco do ozono», e ninguém responde. Pelo menos, vendo as notícias, vejo que não tenho resposta, já que o Al Gore até parece ter voltado à política. Vou tentar uma abordagem budista ou, quem sabe, islâmica. Pode ser que lá para Setembro já me chova na cabeça.
Pais e mães
- No meu tempo, considerávamos a instrução um privilégio. Os pais poupavam e amealhavam para terem os filhos na escola. Para nós, seria coisa de loucos deitar fogo a uma escola.
- Hoje em dia é diferente - respondeu Florence.
- Acha bem que as crianças deitem fogo às escolas?
- Não está na minha mão dizer às crianças o que hão-de fazer - disse Florence. - Hoje em dia está tudo mudado. Já não há mães nem pais.
- Que disparate - disse eu. - Há-de haver sempre pais e mães.
J.M. Coetzee, A Idade do Ferro
- Hoje em dia é diferente - respondeu Florence.
- Acha bem que as crianças deitem fogo às escolas?
- Não está na minha mão dizer às crianças o que hão-de fazer - disse Florence. - Hoje em dia está tudo mudado. Já não há mães nem pais.
- Que disparate - disse eu. - Há-de haver sempre pais e mães.
J.M. Coetzee, A Idade do Ferro
sábado, julho 26, 2008
Blockbuster
Obama é o perfeito produto das máquinas publicitárias do mundo moderno, muito mais do que o mero produto das máquinas de propaganda do Partido Democrata e seus simpatizantes e contribuidores «locais». Mas nisto Obama - à imagem de vários líderes políticos na Europa - tem igualmente o seu mérito: também ele consegue «vender» o próprio produto (ele mesmo) baseando-se nos seus dotes retóricos e oratórios. No final deste ano, soa-me que, infelizmente, tal como todos os «blockbusters» maus do Verão, a campanha vai render o que pretendiam.
O «mundo mágico» de Obama
A ler Victor Davis Hanson sobre o discurso de Berlim de Barack Obama. Uma parte do mesmo fica aqui:
What disturbed me about Barack Obama's Berlin speech were some reoccurring utopian assumptions about cause and effect — namely, that bad things happen almost as if by accident, and are to be addressed by faceless, universal forces of good will.
(...)
With all due respect, I also don't believe the world did anything to save Berlin, just as it did nothing to save the Rwandans or the Iraqis under Saddam — or will do anything for those of Darfur; it was only the U.S. Air Force that risked war to feed the helpless of Berlin as it saved the Muslims of the Balkans. And I don't think we have much to do in America with creating a world in which “famine spreads and terrible storms devastate our lands.” Bad, often evil, autocratic governments abroad cause hunger, often despite rich natural landscapes; and nature, in tragic fashion, not “the carbon we send into atmosphere,” causes “terrible storms,” just as it has and will for millennia.
Perhaps conflict-resolution theory posits there are no villains, only misunderstandings; but I think military history suggests that culpability exists — and is not merely hopelessly relative or just in the eye of the beholder. So despite Obama’s soaring moral rhetoric, I am troubled by his historical revisionism that, “The two superpowers that faced each other across the wall of this city came too close too often to destroying all we have built and all that we love.”
I would beg to differ again, and suggest instead that a mass-murdering Soviet tyranny came close to destroying the European continent (as it had, in fact, wiped out millions of its own people) and much beyond as well — and was checked only by an often lone and caricatured U.S. superpower and its nuclear deterrence. When the Soviet Union collapsed, there was no danger to the world from American nuclear weapons “destroying all we have built” — while the inverse would not have been true, had nuclear and totalitarian communism prevailed. We sleep too lightly tonight not because democratic Israel has obtained nuclear weapons, but because a frightening Iran just might.
What disturbed me about Barack Obama's Berlin speech were some reoccurring utopian assumptions about cause and effect — namely, that bad things happen almost as if by accident, and are to be addressed by faceless, universal forces of good will.
(...)
With all due respect, I also don't believe the world did anything to save Berlin, just as it did nothing to save the Rwandans or the Iraqis under Saddam — or will do anything for those of Darfur; it was only the U.S. Air Force that risked war to feed the helpless of Berlin as it saved the Muslims of the Balkans. And I don't think we have much to do in America with creating a world in which “famine spreads and terrible storms devastate our lands.” Bad, often evil, autocratic governments abroad cause hunger, often despite rich natural landscapes; and nature, in tragic fashion, not “the carbon we send into atmosphere,” causes “terrible storms,” just as it has and will for millennia.
Perhaps conflict-resolution theory posits there are no villains, only misunderstandings; but I think military history suggests that culpability exists — and is not merely hopelessly relative or just in the eye of the beholder. So despite Obama’s soaring moral rhetoric, I am troubled by his historical revisionism that, “The two superpowers that faced each other across the wall of this city came too close too often to destroying all we have built and all that we love.”
I would beg to differ again, and suggest instead that a mass-murdering Soviet tyranny came close to destroying the European continent (as it had, in fact, wiped out millions of its own people) and much beyond as well — and was checked only by an often lone and caricatured U.S. superpower and its nuclear deterrence. When the Soviet Union collapsed, there was no danger to the world from American nuclear weapons “destroying all we have built” — while the inverse would not have been true, had nuclear and totalitarian communism prevailed. We sleep too lightly tonight not because democratic Israel has obtained nuclear weapons, but because a frightening Iran just might.
Omnipresença
É impressão minha ou há uma conspiração dos meios de comunicação social mundiais para erradicar John McCain do horário nobre e oferecer esse tempo a qualquer coisinha que Obama faça?
terça-feira, julho 22, 2008
Promessas
E muito baixinho disse: deixá-lo-ei para sempre, se o deixares viver, e enterrava mais e mais as unhas até sentir a pele romper-se. E continuei: as pessoas podem amar-se sem se ver, amam-Te sem Te ver a vida inteira - e ele apareceu à porta e estava vivo, e eu pensei: a agonia de viver sem ele começa, e desejei-o outra vez definitivamente morto, debaixo da porta.
Graham Greene, O Fim da Aventura
segunda-feira, julho 21, 2008
Tadpole
Tadpole (Gary Winick, 2002) foi uma surpresa para mim, e é um dos filmezinhos mais agradáveis que já vi. Poderia ser considerado um «ensaio» para The Royal Tenenbaums (de Wes Anderson), se não fosse o azar de er surgido mais tarde. Neste caso, a história de aprendizagem, fracasso e desilusão de Oscar Grubman (Aaron Stanford) mistura-se com uma curiosa paixão avassaladora por Eve (Sigourney Weaver), que, para além de ser bem mais velha é... a própria madrasta. Para um filme do qual nunca ouvi falar, pareceu-me francamente bom, independentemente das falhas que possa ter.
Enzensberger e a guerra civil
Em Perspectivas da Guerra Civil, Hans Magnus Enzensberger traz-nos uma excelente reflexão acerca da guerra civil. Mas, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, daqui não resulta um ensaio político, e muito menos um desfile de possíveis causas e culpados da «guerra civil». Não, em Perspectivas... Enzensberger tenta traçar um quadro bem mais moral (e, poder-se-ia dizer, psicológico) do agressor no contexto de guerra civil. E é na definição desta última, da guerra civil, que se encontra o real desafio e originalidade do ensaio. Sem demoras, Enzensberger qualifica como «guerra civil» toda e qualquer agressão continuada (ou persistente, ainda que rapidamente detida) ao «próximo», ao «vizinho», isto é, «não apenas um velho hábito, mas a forma primária de todos os conflitos colectivos».
Assim, para localizar as «guerras civis» perto de todos nós, o escritor alemão vai buscar o esvaziamento ideológico actual (o ensaio data de 1993) para desvalorizar a violência imanente que os delinquentes, skinheads ou hooligans terão para descarregar no primeiro sujeito que encontrarem, por comparação aos guerrilheiros e terroristas dos anos 60 e 70 (com destaque para os marxistas, atiro). Mais importante ainda, Enzensberger tem uma leitura muito simples mas quase perfeita da caracterização psicológica da dinâmica da relação do «vândalo» com o «outro», com o mundo da ordem: «Nos delitos espontâneos os vândalos manifestam - numa amálgama indissolúvel com o ódio a si mesmos - a raiva pelas coisas intactas, o ódio a tudo o que funciona». Quem, no seu perfeito juízo, não terá inveja e ódio à «ordem» quando tudo na sua própria vida parece estar a falhar sem melhoras?
Mas o que é realmente louvável neste ensaio é o pessimismo antropológico e escatológico de Hans Magnus Enzensberger. Ele não vislumbra nenhuma salvação ao fundo do túnel, e não tem pena dos delinquentes, que considera os únicos culpados pela violência que eles próprios distribuem pelo mundo imediato. Tal como os terroristas, não é a ideologia nem os «maus tratos» da sociedade que os levam a empunhar a faca contra os inocentes, mas sim a sua própria condição falível enquanto seres humanos, levando-os a praticar um dos mais velhos crimes da humanidade: o fratricídio.
Mais louvável ainda é a saudável constatação, do ensaísta, de que as pessoas (não menciona qualquer nação, mas o cidadão comum) não têm o dever moral - que se diz ter - de ajudar alguém no outro lado do mundo. Defende a lógica de «first things first», ou seja, é preciso antes de mais praticar o possível, impedindo que alguém vandalize o nosso próprio quintal. Na medida do possível, cooperar com o vizinho. E por aí fora. África é muito longe para as boas intenções de um funcionário público na Europa. Como o próprio vaticina: «Onde quer que estejamos, a guerra está à porta das nossas casas». Mesmo que ainda não tenhamos reparado nela.
Uma metáfora para a desconfiança xenófoba
Dois passageiros num compartimento de comboio. Não sabemos nada do seu passado, origem ou destino. Instalaram-se como se estivessem em casa, ocupando mesinhas, cabides, cubículos para bagagem. Há jornais, casacos e malas de mão espalhados pelos lugares vagos. Abre-se a porta e entram dois novos viajantes. A sua chegada não é bem-vinda. Há uma evidente má-vontade por terem de se chegar , retirar as coisasdos lugares vagos e partilhar o espaço disponível. Neste caso, os primeiros passageiros comportam-se de forma particularmente solidária, apesar de não se conhecerem. Confrontam, como grupo, os recém-chegados. É o «seu» território que está a ser disputado. Qualquer um que apareça é visto como intruso. Consideram-se nativos e revindicam a totalidade do espaço. Esta atitude não se pode explicar de forma racional, parece estar profundamente enraizada.
Hans Magnus Enzensberger, A Grande Migração
Hans Magnus Enzensberger, A Grande Migração
domingo, julho 13, 2008
Nacionalismo à portuguesa
Em Portugal, o nacionalismo não teve como no resto da Europa um conteúdo laico e liberalizante (excepto nos breves episódios da Patuleia e da propaganda republicana entre 1890 e 1910). Pelo contrário, quase sempre não se distinguiu do ultramontanismo católico e das causas típicas da conservação.
Vasco Pulido Valente, Ir Prò Maneta - A Revolta contra os Franceses (1808)
Vasco Pulido Valente, Ir Prò Maneta - A Revolta contra os Franceses (1808)
Seleccionador
Para acabar com todo este zum-zum em redor do hipotético novo seleccionador nacional, por mim convidava-se Luís Freitas Lobo e ficava o assunto arrumado.
terça-feira, julho 08, 2008
A good WC is hard to find
As casas de banho públicas deixam-me a tremer até ao osso. Nunca pensei que isto chegasse a este ponto. Para ser científico, deixam-me em completo estado de paranóia. A aventura repete-se sempre da mesma forma: entro no sítio, normalmente, empurrando a porta para o lado (que se vem a fechar automaticamente atrás de mim), dirijo-me ao local do crime e faço o que tenho a fazer. Até aqui é sempre perfeito, tal como se fazia antigamente nas esquinas das ruas e nas árvores da escola quando se era pequeno. Tempos em que o pragmatismo se sobrepunha à funcionalidade. Por mim tudo bem, mijo num complexo construído em laboratório, de regra e esquadro, para o efeito, como mijo do alto de um penedo para o centro da colónia de formigas, exercendo ocasionalmente o meu direito darwiniano de abuso dos mais fracos (pelo que sei e sinto quando me sento na base de uma árvore, no campo, as formigas comer-nos-iam a todos vivos se tivessem mais metro e meio de altura).
Mas toda a expressão que traga «público» ou «pública» no comboio, normalmente no fim do mesmo, é sinal de tempestade. As casas de banho não são excepção. O cheiro a urina, que mais parece estar espalhada pelas paredes e, não raras vezes, pelo espelho, pauta o ritmo acelerado que qualquer pessoa normal leva para acabar o mais rápido possível o seu trabalho e sair dali. As figuras sinistras que, uma ou outra vez, povoam estes locais quebrando (durante largos segundos) a regra de nunca cruzar o olhar com outro homem dentro do teatro de guerra. As torneiras que se desligam sozinhas após três segundos. O sabonete esgotado. O papel inexistente. O secador avariado. São todos ecos da única palavra que pode qualificar uma casa de banho pública: obsoleto.
Mas o pior, o meu pesadelo, é mesmo, a partida. Como tirar os habitantes desta colónia de férias de bactérias das mãos? Mexe-se na torneira, lava-se as mãos, mexe-na caixa do sabonete, lava-se, seca-se. E depois, quem abre a porta? Já alguém pensou que, invariavelmente, todas as almas que já entraram numa determinada casa de banho pública tiveram de abrir a porta para sair? O que quer dizer que pelo menos uma mão, de cada uma das pessoas que já usaram essa casa de banho, esteve no puxador da porta. Como mexer no puxador sem estragar a meticulosa missão de lavagem? Ninguém sabe. Para minha contínua perdição psicológica, ainda nenhum arquitecto pensou nisso a fundo.
Antes a única coisa com a qual nos preocupávamos era se estaria alguém à vista ao pé da árvore de eleição. Na idade selvagem dos anos 80 e 90. Tempo em que o homem usava o meio-ambiente à vontade. Hoje em dia, é o meio-ambiente que usa o homem. Ou, pelo menos, me usa a mim.
Caçadores
Confissões, pedidos de desculpa: porquê esta sede de humilhação? Segue-se um momento de silêncio. Permanecem em torno dele como caçadores que encurralaram um animal desconhecido e não sabem como matá-lo.
J.M. Coetzee, Desgraça
J.M. Coetzee, Desgraça
Haverá sangue
J.M. Coetzee. Tiro o chapéu a este homem.
E tiro, de forma generosa, o chapéu à «literatura africana». Num pequeno parêntesis, passo a explicar esta última expressão, deveras ambígua: África, como fica bem provado em Desgraça, de Coetzee, é um continente «quente», que ao longo dos tempos tem sido palco de revoluções, convulsões, tumultos e mudanças sociais e políticas intermináveis, logo, é o palco ideal para uma narrativa pela imprevisibilidade (mesmo nos dias que correm) do que pode acontecer a qualquer momento. A ficção neste continente, misturada com a liberdade de exploração da África profunda, tem, por isso, em si um mundo de possibilidades.
Desgraça, obra de J.M. Coetzee, surge um pouco dessa situação. Da situação de tensão racial na África do Sul, pátria de Coetzee e do próprio romance. É a tensão racial que, inesperadamente, sem antes se revelar, se vai cruzar com a história de David Lurie (a personagem principal, segundo alguns feita à imagem do autor), um professor branco na Universidade do Cabo que parte, já «em desgraça», para o campo, onde partilhará os seus dias com a filha Lucy. É nesta propriedade que se dará o clímax precoce mas terrível da obra, que muito deverá à tensão racial acima referida. David e Lucy terão as suas vidas completamente mudadas por um acontecimento hediondo.
O espírito da narrativa, aliás, fez-me lembrar, e muito, o filme de P.T. Anderson Haverá Sangue (There Will Be Blood). Não tanto pelo conteúdo, mas pela construção dos actos e consequências de Daniel Plainview, que nos levam necessariamente a levar à letra o título do filme: haverá sangue. E, à medida que se vai lendo Desgraça, é isso que se sente. Que a qualquer momento, num golpe terrível do destino, «haverá sangue». Embora não queira estragar a surpresa, a verdade é que, realmente, esse sangue é derramado.
Desgraça poderá não ser o melhor romance de J.M. Coetzee. Haverá, até, melhores escritores que o sul-africano e com temas e enredos bem mais abrangentes e over the top. Mas no que toca a literatura do final do século XX, poucos terão a capacidade de envolvência moral que este tem. E, para além da carga moral, também há a meticulosidade estrutural e técnica da trama, que claramente fecha o leitor numa jaula de curiosidade. Se há romances perfeitos, posso arriscar que Desgraça, de Coetzee, pode bem ser um deles.
sexta-feira, julho 04, 2008
Diplomacia
Como sempre nestas coisas, as Nações Unidas têm feito «o melhor que podem» para pressionar, de forma «diplomática» e «civilizada», o imperador Robert Mugabe e seus sequazes no Zimbabwe. Mas é óbvio que, como também é habitual, esta pressão das Nações Unidas é o símbolo da nulidade e da inércia da instituição e de todos os que depositam esperança na mesma. É a diplomacia frouxa do «se não nos obedecem, nós vamos chatear-nos e fazer queixinhas a alguém». Nisto de lidar com predadores com jeito para ganhar e reter o poder, sempre gostei mais do estilo de Churchill do que do estilo de Chamberlain.
Coisas que me assustam
A partir de hoje os novos cães portugueses passam a ter obrigatoriamente implantado um micro processador que os identifica. Os cães passam a ter bilhete de identidade escrito no corpo, e um número único, como se fosse um código de barras. Nada impede que o que se está a fazer aos cães se faça aos humanos e estou convencido que será apenas uma questão de tempo. No século XX muitos humanos estiveram já marcados, como o gado, nos campos de concentração.
José Pacheco Pereira, no Abrupto
José Pacheco Pereira, no Abrupto
quinta-feira, julho 03, 2008
O estado das coisas
Gárcia Márquez
Mais uma prova de que se deve esquecer a vida política de um autor para encontrar o verdadeiro valor da sua obra escrita está em Gabriel García Márquez. Por outro lado, mais a nível pessoal, é, como se costuma dizer nos fóruns de opinião, a «prova provada» de que estou sempre a aprender e sempre a surpreender-me com o mundo da literatura. A obra de García Márquez segue, de forma terna - e com «vontade de contar histórias», à maneira de Sepúlveda - aquilo que eu mais gosto na literatura e que é aquilo que é também mais importante na criação: pegar em algo no qual ninguém acredita e torná-lo numa situação ou história que ninguém quer esquecer. O colombiano consegue isso mesmo, e muito mais.
Culpa
Iam em três noites sem dormir, mas não conseguiam descansar, pois assim que começavam a adormecer lá voltavam eles a cometer o crime. Já quase velho, tentando explicar-me o seu estado naquele dia interminável, Pablo Vicario disse-me sem nenhum esforço: «Era como estar acordado duas vezes.» Essa frase fez-me pensar que o mais insuportável para eles no calabouço deve ter sido a lucidez.
Gabriel García Márquez, Crónica de uma Morte Anunciada
Gabriel García Márquez, Crónica de uma Morte Anunciada
Lester Ballard
Lester Ballard é uma das figuras mais sinistras, mais assustadoras, mais violentas, mais desequilibradas e mais imprevisíveis que já conheci. E é também uma personagem de Cormac McCarthy, saída do livro Filho de Deus (Child of God). Ballard deambula pelas montanhas, pelos bosques e pelas cavernas de uma região no Tennessee (estado, aliás, que McCarthy bem conhece, já que foi lá que nasceu), levando uma vida solitária, sem afecto nem qualquer tipo de solidariedade. Um assassino impiedoso, mas que não mata por qualquer razão específica, nem por obsessões, mas por uma série interminável de ódios bem primitivos encavalitados uns nos outros. O facto de Ballard ser visto, de vez em quando, a passear com um vestido de mulher e a cabeleira (e escalpe) de raparigas assassinadas talvez ajude a explicar um ou outro comportamento (rever o Psico de Hitchcock também ajuda a estabelecer pontes), que Lester leva a cabo sem qualquer escrúpulo, mágoa ou remorso. São, aliás, os casais de namorados clandestinos nos carros que param em sítios desertos para o namoro que figuram entre as principais vítimas. E são as raparigas que lhe parecem insinuar sexualidade que lhe despertam o instinto mais primário, que oscila entre a predação e o ódio ressabiado.
Ballard é, para muitos leitores, uma personagem abjecta que vai despertando simpatias ao longo da obra. A mim, o homem não me despertou qualquer abjecção, mas simplesmente um sentimento bem vincado: Ballard é a personagem humana mais selvagem que me lembro de ter conhecido num romance.
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