segunda-feira, abril 02, 2007

Escrita sem mapa


Há escritores que nos fazem entrar num estranho corrupio de pensamentos enquanto os lemos. Não há uma história inteiramente perceptível, não há um final à vista, não há um clímax. Apenas um desenrolar errante da escrita. Raul Brandão, em Húmus, é um deles. Temas incertos, pelo menos para mim que nem sempre estou atento à globalidade, à «unidade» dos romances. Uma vila, algumas personagens progressivamente enriquecidas ou reveladas, e a morte. Sempre a morte. «O corpo pede-me terra», repete-se ao longo de Húmus. Aliás, a terra que engole os vivos - ou recebe os mortos, conforme o ponto de vista - é a personagem mais importante do romance, juntamente com a própria Morte: «Os túmulos estão gastos de um lado pelos passos dos vivos e do outro pelo esforço dos mortos». Corpos abandonados pela vida multiplicam-se ao longo da obra-prima de Brandão. «É a morte que regula a vida. Está sempre ao nosos lado», diz o homem. E assim é. Um génio com uma obra de génio, uma obra cheia de morte. Obra essa que nem sequer é romance, mas é o melhor livro que li este ano. Sem perceber muito bem o que é. Diário? Prosa poética? Eu diria algo original: é uma escrita sem mapa.

[João Carlos Silva]

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