As estatísticas, originalmente um instrumento crucial para as políticas à escala nacional, tornaram-se, no modelo actual da democracia, numa mera forma, mais civilizada, de atirar areia aos olhos das pessoas através de uma espécie de «milagre dos números».
Em The Wire (Sob Escuta na versão portuguesa), série americana cuja acção se passa em Baltimore, um dos grandes temas é a incapacidade das instituições, serviços e da própria sociedade em dar resposta às verdadeiras necessidades das pessoas, e em especial daquelas, refere o criador da série David Simon, «de quem não se precisa». E isto não acontece, necessariamente, porque não se tem meios e se falha tentando. Mas sim porque, com o objectivo de salvarem a sua própria pele, as chefias e principais responsáveis por cada instituição (seja um departamento de polícia, seja uma escola) – quase sempre responsáveis políticos – escolhem sempre adiar a resolução dos verdadeiros problemas, e por vezes até adiar o reconhecimento destes, com objectivos eleitorais ou de promoção.
A expressão que uma das personagens da série usa para descrever isto é «juking the stats». Ou seja, numa tradução mais livre, a «manipulação das estatísticas». A personagem em questão, um polícia tornado professor liceal, compara a necessidade que as escolas têm de apresentar resultados estatísticos com a mesma necessidade presente no seu antigo departamento de polícia. Diz ele que se se transformarem «roubos» ou «extorsões» em meras «apropriações indevidas» e se se fizerem as «violações desaparecerem», então os «majores tornam-se coronéis». A mesma coisa na escola: com ordens de cima, foca-se o ensino numa disciplina particular que possa fazer subir a média geral, para que a escola possa ficar bem classificada e, assim, eventualmente, receber mais financiamento e mais crédito.
O exercício tem sido o mesmo em relação aos exames do ensino secundário e do básico em Portugal, mas também no próprio conteúdo dos programas de ensino. Ou seja, baixam-se as exigências, aperta-se o cerco em redor dos professores e as directivas políticas (repito, políticas) poderão fluir livremente, com todos a cumprir, de forma ordeira, as metas delegadas de «cima para baixo»: conseguir notas mais altas. Como resumiu Daniel Bessa no Expresso de 4 de Julho: «”Este ano, a média subiu”: não significa nada senão que, presumivelmente, o grau de exigência baixou». Ora, ao conseguir melhores notas desta forma, a educação não melhora. O que acontece é que as falhas, as debilidades e a pesada herança do analfabetismo (mesmo daqueles analfabetos que acham que sabem ler, escrever e pensar) vão passando de geração em geração até que alguém resolva sacrificar-se para as resolver. Ou não tenha outro remédio senão fazê-lo. Tal como a dívida externa e o défice orçamental.
Mas a brincadeira, ou o «milagre», das estatísticas tem-se estendido às mais diversas áreas da sociedade portuguesa. As quotas máximas de alunos que podem ter apoio escolar especial por dificuldades de aprendizagem, já que um número elevado destes mancharia certamente a imagem de Portugal como sendo um país de génios à partida, ou pelo menos geneticamente preparados para o mercado europeu. O inacreditável malabarismo com os números das mortes na estrada, que descobri numa reportagem recente, em que um porta-voz da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados revelava que, em acidentes de viação, as vítimas que morressem na ambulância ou no hospital já não eram contabilizadas como «mortes na estrada». As acções policiais aleatórias na estrada ou em casas particulares à procura de alguém com um pouco de álcool no sangue ou de um qualquer desgraçado com um pacote de drogas leves no quarto – como se isso mudasse algo no mercado e no «mundo da droga». Enfim, os próprios Centros de Novas Oportunidades, que, por muito bonito que possa parecer dar diplomas a quem os merece através do trabalho, mais não é do que uma forma do governo português mostrar números a Bruxelas e talvez receber mais uns empréstimos para financiamento.
Em muitos aspectos, a série que referi – The Wire / Sob Escuta – toca em feridas que estão bem abertas em Portugal. Nos últimos anos, o nosso país tem andado, em grande parte, a reboque de políticas executivas que mais não fazem do que melhorar o aspecto geral de toda esta tragédia de maneira que possamos ser vistos como um país da «primeira divisão» (perdoem-me a contagiante metáfora desportiva) enquanto os problemas continuam lá, debaixo de toda a maquilhagem. Um pouco como num velório, onde o defunto surge maquilhado e vestido com o seu melhor fato. Mas, por muito que se queira fingir que assim não é, o morto continua morto.
(Publicado no Setúbal na Rede, 16 de Julho de 2009)
2 comentários:
o médico quando chega à freguesia quase deserta DO alentejo - ao padre, depois de coversa longa:
-quanto a índice de mortalidade, senhor padre?
- baixíssimo, doutor:
uma morte por pessoa
Certissimo e tristissimo
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