Por ocasião da comemoração dos trinta e cinco anos do 25 de Abril, e por entre os cânticos simbólicos mas que já são mais rotina que outra coisa, é bom alertar para uma evidência: em Portugal dá-se muito pouco valor à liberdade.
Se é inegável que o 25 de Abril quebrou várias prisões (literal e figurativamente), não será menos óbvio que o tempo apagou a memória do que é viver sem liberdade. Não falo de poder ou não votar para cargos públicos – que é parte exclusiva do conceito de «democracia» – mas de poder viver a vida, agir, interagir com a sociedade de forma completamente livre do Estado. Não me interessa discutir a «Revolução dos Cravos», a sua complexidade ou o seu sentido de forma fechada. O que interessa aqui é lembrar o que se conseguiu (pelo menos, parcialmente) recuperar em 1974 e que agora progressivamente se está a perder: a liberdade. E os últimos dois ou três anos têm sido terríveis nesse processo de perda de liberdades.
Um dos primeiros grandes passos para o precipício (isto excluindo muitas outras medidas que não têm conta) foi dado com o projecto-lei da maioria socialista que visa meter uns chips electrónicos nos carros para «optimizar» a função da matrícula, aparentemente para funções de contagem apenas. No entanto, esse «Sistema de Identificação Electrónica de Veículos», ou SIEV, não passa de mais um degrau na lenta reconstrução de uma sociedade inteiramente debaixo da mão do Estado (é de realçar que já quase 3 mil pessoas assinaram uma petição – www.ipetitions.com/petition/siev – que tem o objectivo de abortar a aprovação da lei) . Se é verdade que os portugueses sempre estiveram, historicamente, asfixiados pela presença do Estado central, também é verdade que antes os políticos não mentiam tão bem.
Curiosamente, esta medida, aparentemente «em defesa da segurança», nem sequer tem essa função, como revelara o Secretário de Estado Paulo Campos: o SIEV servirá para um «conjunto» de utilizações, que incluirão portagens, seguros (com a consequente necessidade de saber sempre onde a viatura está e quanto anda), medidas contra a poluição (fica sempre bem comover a veia ecologista) e, claro, entre tantas outras pretensas utilidades, a remota possibilidade da maior segurança de encontrar o carro em caso de roubo (uma miragem, já que não oferece quaisquer garantia de segurança). Com isto tudo, vai-se a privacidade e a liberdade de cada um não ser seguido pelo Estado onde quer que leve o seu carro.
Mas não se ficou pelos «chips». Este governo de maioria achou por bem revolucionar o Direito Penal português e até as bases em que assenta o nosso Estado de Direito (uma vez mais, é irónico que isto se passe pouco antes dos festejos do chamado Dia da Liberdade), ao preparar o levantamento do sigilo bancário e estar à beira de avançar com propostas de legislação quanto ao dito «enriquecimento ilícito».
Ou seja, já que «quem não deve não teme», pode-se muito bem inverter o ónus da prova e pôr tudo a nu. Cada cidadão passa a ter as suas contas bancárias ao «ar livre» (para o diabo com os mandatos e as intimações) e qualquer simples funcionário pode vir espreitar quanto ganha cada português, que quantia guarda este no banco e tudo o mais que lhe der na real gana. Qualquer cidadão, até prova em contrário, é um suspeito de meter a mão ao bolso alheio e por isso deve arcar com o fardo de perder a privacidade. Em nome da justiça. Por meia dúzia de maçãs podres – nas suas devidas proporções –, abate-se a árvore inteira.
É assim que surge a tão badalada «Lei do Enriquecimento Ilícito». Esta, um pouco como a sua prima legislativa do levantamento do sigilo bancário, parece estar na moda, num jeito justiceiro bem português, e por isso já se tornou confuso saber a sua proveniência: se veio da maioria socialista no governo, se veio da extrema-esquerda ou até da direita na Assembleia. O que interessa é que se retira ao cidadão um direito básico da democracia: a presunção de inocência. Como diz muito bem o juiz Rui Rangel no Expresso de (atentem na data) 25 de Abril de 2009, «ter direito à presunção de inocência, valor de consagração universal nas democracias modernas, é não ter o ónus de provar que está inocente. Inverter o ónus da prova, em direito penal, dando de mão beijada ao acusador a benesse de acusar e mais nada fazer, é o mesmo que Judas fez com Cristo, é atraiçoar princípios e expectativas legítimas de cidadania. Quer-se viver em democracia com atitudes típicas de uma ditadura».
E depois há o facto curioso de se querer passar a função «penalizadora» para as autoridades fiscais, sem intermédio da Justiça. Isto é, o fisco decide que há um X «ilícito», logo automaticamente converte 60% desse valor em receita fiscal. Ora, se é ilícito deve ser investigado pelos meios competentes, já que a ilegalidade desses lucros, a ser provada, estará na totalidade do valor, e não numa parcela. Assim soa-me mais que o Estado quer ser um parceiro no crime, aproveitando para arrecadar um belo aumento na receita fiscal (sem dúvida, essencial para sanar a tragédia orçamental que aí vem). Tiro o meu chapéu ao deputado comunista António Filipe, que apontou precisamente esse facto de o Estado se estar a pôr na posição de «parte interessada no enriquecimento ilícito».
E assim vamos nós em Portugal, numa série de leis e ideias que, a serem levadas todas a sério, punham-nos novamente a um passo de recuperar a PIDE. Ideia que, certamente, não desagradará a Manuel Simas Santos, uma luminária do Supremo Tribunal de Justiça que acordou um dia e decidiu criar uma Base de Dados de Perfis de ADN, crente na relação proporcional entre nível tecnológico de um país e a sua segurança. Na sua ideia, já não passa a ser preciso sequer cometer um crime para constar dessa Base de Dados, o que atira para o comum cidadão essa função tão cívica de se ir entregar à esquadra local, tal qual vulgar criminoso, para dar sangue. É que entregar as suas liberdades de mão beijada será, certamente, para o Dr. Simas Santos, um dever público, já que no futuro esta lei, segundo ele, «aponta para que, gradualmente, ela venha a conter os perfis de ADN de toda a população». Manuel Simas Santos, o autor destas belas palavras retiradas de um filme de terror, tem cabelos brancos, o que só vem comprovar a minha teoria de que a idade não cura os idiotas.
Como disse no início, os portugueses dão pouco valor à liberdade, e ainda menos à liberdade dos seus pares. Três em cada quatro pessoas com quem falo resignam-se ao velho ditado popular de que «quem não deve não teme», o que não será por acaso. Um velho amigo acertou em cheio ao notar que este «parece ser um ditado muito popular», o que explicará a falta de liberdade portuguesa. Nem mais. O português facilmente entrega tudo ao Estado, irracionalmente confiante em que qualquer poder que venha de cima certamente corrigirá todos os erros da sua sociedade e, muitas vezes, da sua vida profissional e pessoal. Quando uma empresa falha ou, até bem pelo contrário, quer fazer dinheiro com, por exemplo, monumentos (caso do Turismo), a solução habitual é transferir toda a tutela desses elementos para o Estado, O que é perfeitamente irracional e ilógico, já que foi o Estado que, mais do que qualquer privado, desiludiu e explorou os homens ao longo do tempo.
A crença no «Poder lá de cima» poderá ser um reflexo das nossas raízes cristãs, na fé de que a absolvição e a justiça sempre virão de cima. Mas os portugueses, tal como muitas outras pessoas noutros países, esquecem-se de que não é Deus que governa o seu país. Os governos, em Portugal, são dirigidos por homens. E os homens, como se sabe, ao longo de vários milénios, nunca conseguiram deixar de falhar, de se deixar corromper, de abusar do poder e de, inevitavelmente, destruir as coisas boas que se puderam, por vezes a muito custo, construir.
(Publicado no Setúbal na Rede, 30/04/2009)
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