Poderia meter aqui mil e uma páginas d'O País das Maravilhas (estou a exagerar, mas ainda a antologia ainda tem quase 550 páginas) que convenceriam qualquer um do brilhantismo das crónicas de Vasco Pulido Valente. Aliás, a genialidade está no facto de retratar tão bem o Portugal que tínhamos - em 1975-79 - que acaba por retratar o Portugal que temos - em 2009. Muitos artigos acabam mesmo por ser ensaios informais de História que tanto fazem uma ponte com o passado como adivinham o que virá a acontecer nos mais de trinta anos seguintes. Do século XIX ao século XXI, Portugal continua cheio de bandidos, ignorantes e profetas da aurora do dia seguinte, os «brawlers, bawlers & bastards» de Tom Waits.
A título de exemplo, Vasco Pulido Valente escrevia isto no Expresso em 28-10-1978, em crónica intitulada «A Cultura dos Políticos»:
Numa entrevista recente, Manuel Alegre decidiu chamar-me «integralista lusitano», miguelista e adversário da Revolução Francesa. Tudo isto está certo. Manuel Alegre é talvez licenciado em Direito e publica uns versos declarativos e oratórios, como já não se faziam há cem anos, e que são, ao nível da rima, o seu autêntico retrato político. Com estas qualificações, não se lhe deve pedir mais, nem a mim me pagaram para lhe explicar o que foi o «integralismo lusitano», o miguelismo e a Revolução Francesa.
Mas o caso de Manuel Alegre, em si próprio destituído de qualquer importância, é infelizmente típico. A cultura da classe que nos governa não difere em geral da dele. Para começar, não passa quase sempre de uma cultura jurídica e literária, ou seja, de uma amálgama do pior positivismo jurídico que se ensinou (e se continua a ensinar) nas nossas universidades, com algumas ideias imprecisas sobre a sociedade e o mundo, adquiridas por tradição oral e na leitura de «escritores» «progressistas» ou «bem pensantes». Um caldo deprimente, servido, à esquerda, com Marx, Lenine, Gramsci e os epígonos franceses da moda; e, à direita, com prosa pacificadora, género Aron e Galbraith.
Os políticos de extracção jurídica constituem sem dúvida a maioria dos profissionais do ramo, como no século XIX. A sua formação filosófica é menos do que sumária e os seus contactos com as ciências sociais tímidos ou nulos. Ao lado deles, porém, existe hoje a nova espécie dos economistas, que se consideram a si próprios o sal da terra e os apóstolos do realismo e do bom senso. Só que, revolucionários, reformistas ou conservadores, todos tendem a praticar a sua arte como se não vivessem em Portugal, ou em qualquer outro lugar de matéria e trevas, e todos amargamente se queixam de que o Governo e o País sem razão se recusam a seguir as suas salvíficas receitas. Para eles, supor que a economia tem alguma coisa a ver com a sociedade é uma aberração e um pecado.
De resto, advogados ou economistas, economistas ou engenheiros, os príncipes que nos pasotreiam partilham certas características intelectuais significativas. A primeira é com certeza a sua radical ignorância da nossa História: encontrei muitos políticos desde 25 de Abril, não encontrei nenhum que não ficasse reprovado num exame elementar de História de Portugal. A segunda é a sua absoluta falta de familiaridade com os problemas teóricos e mesmo com a linguagem técnica rudimentar da sociologia contemporânea: pequena lacuna que frequentemente os impede de perceber as questões mais simples e sobretudo de avaliar o que os especialistas deste ou daquele assunto lhes resolvem dizer. A terceira é o seu devastador desconhecimento do País que se propõem gerir: como várias vezes pude constatar, nem imaginar conseguem o que de facto precisam saber.
Objectar-se-á que aos políticos basta cultura política (o que, em 1978 e com uma administração como a portuguesa, obviamente não basta). Mas até cultura política, em sentido próprio, não a têm. Fora Marx e Lenine, não abriram os clássicos. Dos grandes sistemas políticos acumularam penosamente meia dúzia de noções triviais, destinadas ao jornal e ao comício. No dia-a-dia, sustentam-se do estereotipo e do maniqueísmo.
E, coitados, como seriam diferentes com a universidade que os educou e que por aí, intacta, persiste? São competentes no que podem, isto é, na manobra, na proclamação, na promessa estrondosa e no adjectivo que rufa. Não são competentes no entendimento do País e na sua acção sobre ele. Alimentam-se das formas e geram a irracionalidade.
Tudo concorda.
A título de exemplo, Vasco Pulido Valente escrevia isto no Expresso em 28-10-1978, em crónica intitulada «A Cultura dos Políticos»:
Numa entrevista recente, Manuel Alegre decidiu chamar-me «integralista lusitano», miguelista e adversário da Revolução Francesa. Tudo isto está certo. Manuel Alegre é talvez licenciado em Direito e publica uns versos declarativos e oratórios, como já não se faziam há cem anos, e que são, ao nível da rima, o seu autêntico retrato político. Com estas qualificações, não se lhe deve pedir mais, nem a mim me pagaram para lhe explicar o que foi o «integralismo lusitano», o miguelismo e a Revolução Francesa.
Mas o caso de Manuel Alegre, em si próprio destituído de qualquer importância, é infelizmente típico. A cultura da classe que nos governa não difere em geral da dele. Para começar, não passa quase sempre de uma cultura jurídica e literária, ou seja, de uma amálgama do pior positivismo jurídico que se ensinou (e se continua a ensinar) nas nossas universidades, com algumas ideias imprecisas sobre a sociedade e o mundo, adquiridas por tradição oral e na leitura de «escritores» «progressistas» ou «bem pensantes». Um caldo deprimente, servido, à esquerda, com Marx, Lenine, Gramsci e os epígonos franceses da moda; e, à direita, com prosa pacificadora, género Aron e Galbraith.
Os políticos de extracção jurídica constituem sem dúvida a maioria dos profissionais do ramo, como no século XIX. A sua formação filosófica é menos do que sumária e os seus contactos com as ciências sociais tímidos ou nulos. Ao lado deles, porém, existe hoje a nova espécie dos economistas, que se consideram a si próprios o sal da terra e os apóstolos do realismo e do bom senso. Só que, revolucionários, reformistas ou conservadores, todos tendem a praticar a sua arte como se não vivessem em Portugal, ou em qualquer outro lugar de matéria e trevas, e todos amargamente se queixam de que o Governo e o País sem razão se recusam a seguir as suas salvíficas receitas. Para eles, supor que a economia tem alguma coisa a ver com a sociedade é uma aberração e um pecado.
De resto, advogados ou economistas, economistas ou engenheiros, os príncipes que nos pasotreiam partilham certas características intelectuais significativas. A primeira é com certeza a sua radical ignorância da nossa História: encontrei muitos políticos desde 25 de Abril, não encontrei nenhum que não ficasse reprovado num exame elementar de História de Portugal. A segunda é a sua absoluta falta de familiaridade com os problemas teóricos e mesmo com a linguagem técnica rudimentar da sociologia contemporânea: pequena lacuna que frequentemente os impede de perceber as questões mais simples e sobretudo de avaliar o que os especialistas deste ou daquele assunto lhes resolvem dizer. A terceira é o seu devastador desconhecimento do País que se propõem gerir: como várias vezes pude constatar, nem imaginar conseguem o que de facto precisam saber.
Objectar-se-á que aos políticos basta cultura política (o que, em 1978 e com uma administração como a portuguesa, obviamente não basta). Mas até cultura política, em sentido próprio, não a têm. Fora Marx e Lenine, não abriram os clássicos. Dos grandes sistemas políticos acumularam penosamente meia dúzia de noções triviais, destinadas ao jornal e ao comício. No dia-a-dia, sustentam-se do estereotipo e do maniqueísmo.
E, coitados, como seriam diferentes com a universidade que os educou e que por aí, intacta, persiste? São competentes no que podem, isto é, na manobra, na proclamação, na promessa estrondosa e no adjectivo que rufa. Não são competentes no entendimento do País e na sua acção sobre ele. Alimentam-se das formas e geram a irracionalidade.
Tudo concorda.
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