quarta-feira, maio 31, 2006

Admiração póstuma


Elliott Smith

[João Carlos Silva]

A mais bela história

A mais bela das mulheres (porque tu a amas) apaixona-se por ti e tu deixa-la fugir, como se ela fosse um pássaro que, a pouco e pouco, vai perdendo as penas até se deixar morrer.
Uma grande mentira que se inventou foi o amor correspondido.
Quando duas pessoas se enamoram uma pela outra, tudo parece indicar que se gera um sentimento universal, inabalável. No entanto, o Amor tem uma substância demasiadamente pesada para que possa ser suportado por duas pessoas ao mesmo tempo. É por isso que uma relação nunca é vivida da mesma maneira pelo par. Enquanto um sofre, o outro pensa que tudo decorre de forma perfeita. Enquanto um está em casa à espera que uma nova manhã apareça para que possa ver o seu amado, o outro está num hotel a fornicar uma brasileira calejada.
Todas as moedas têm duas faces. Eu posso ser a insígnia real e tu a cara do imperador. Mas nunca nos podemos juntar do mesmo lado. Com os sentimentos se passa o mesmo. O que não quer dizer que amar seja impossível: olhando para a fotografia da minha esposa, posso amar de uma forma que nunca ninguém amou.
Contudo, a mais bela das mulheres apaixonou-se por mim e eu deixei-a fugir. E ela amou-me de uma forma impossível, já que fugiu e eu não a apanhei. E ela agora chora.

[Paulo Ferreira]

terça-feira, maio 30, 2006

Sorteio

É possível que a cada três homens dois deles estejam destinados à mediocridade. Assim como outros dois deles estejam destinados a ser alguém na vida.

[João Carlos Silva]

A uma leitora mais optimista









Não somos a mesma pessoa. A sério.

[João Carlos Silva]

autobiografia 10

Uma ausência é sempre uma longa ausência. E forçada, para ser um pouco mais azeda. Qualquer homem que se preze tira uma mês de vez em quando para morrer um pouco mais. Sozinho.

[João Carlos Silva]

sábado, maio 27, 2006

Descer ao pó

Bater com o queixo no chão pode não ser das coisas mais fascinantes da existência humana, mas às vezes é necessário que se percam algumas gotas de sangue num soalho de madeira para que se perceba que a superioridade não advém da inteligência ou da precocidade intelectual.
Em miúdo parti o queixo enquanto tentava iludir uma inocente ninfeta com promessas de uma paixão que, só anos mais tarde, viria a reconhecer como urgente para a minha sobrevivência. Ganhei uma cicatriz vitalícia, um traço de sangue para acalmar o medo nas horas de maior aflição.
Mas nunca percebi.
O entendimento ganha uma maior lucidez quando se vivem situações de real perigo ou aflição.
Ouvi na televisão que um jogador de futebol perdeu um dedo a festejar um golo com os seus adeptos. Isso não é chegar a entender. Se o jogador voltar a marcar um golo, não se importará de voltar a perder outro dedo.
Entender é um indivíduo de quatro dedos marcar um golo e não ficar disponível para perder outro dedo.
A prostituta que se casa com um trintão desdentado ou a velhota que se apaixona por um puto de vinte anos, eis alguns casos de inteligência não reconhecida. A prostituta não se veste de noiva para um desdentado, a menos que o seu rabo desça até ao chão. Nenhuma sexagenária consegue fazer com que um rapaz de tenra idade se enamore por ela.
Mas, do mesmo modo que uma velha precisa de amar até morrer, também uma prostituta precisa de um lugar que possa ser seu. Se esse lugar for entre as gengivas vazias do marido, paciência.
A inteligência não requer um prémio Nobel ou um lugar de destaque em todas as conferências políticas. Eu nunca fui inteligente porque nunca dancei música progressiva quando alguma mulher precisava de companhia.
Tenho três dedos numa mão que poderia ter cinco. O que não quer dizer que nunca tenha aprendido com a vida: já parti o queixo. Mas os velhos bêbedos também já foram todos atropelados e continuam bêbedos.
Como te percebo, minha querida avó.

[Paulo Ferreira]

sexta-feira, maio 26, 2006

O rapaz sem sol

O amor é belo quando os dias estão para isso.
Um gato aceita festas do dono quando tem a barriga vazia.
O escritor escreve quando tem ilusões.
Esquecer-me de ter ligado à minha mãe no dia do seu aniversário também tem um não sei quê de amoroso, porque nos dias seguintes o telefone dela toca e ninguém atende.
Mas o que é mesmo triste nesta vida é o sol não brilhar para todos. Não me refiro à dor. Os dentes doem a quem não os lava ou a quem peca. Mas o sol é diferente: é um motivo de felicidade.
A escuridão não brilha no céu nem dá vontade de dar pulos de alegria no ar. Porque ninguém tem vontade de gritar debaixo de água.
Quando chove, fumam-se cigarros e têm-se conversas desgraçadas. Quando está escuro, dorme-se ou faz-se sexo. O sexo na escuridão é animalesco, como a guerra e as pernas que são amputadas porque já não têm como se salvar dos rasgos do metal. O escuro faz com que as mulheres levantem as pernas e que peçam para serem comidas.
Mas ninguém ama ao escuro. Ninguém é feliz na treva.
O indiano que se deixou atropelar por um comboio nunca viu o sol: era um morcego. Ele bem o procurou, mas ninguém lho deu. Foi sempre um desgraçado, este indiano.
Se eu fosse deus, roubava um bocadinho de sol à lua todas as noites até lhe construir um templo e, quem sabe, um mundo. E todas as pernas depiladas seriam dele. E toda a família dele lhe daria todo o amor que agora já não lhe faz falta. E o planeta seria belo como nunca foi.
Puta de vida.

[Paulo Ferreira]

O dinheiro

Arma: o revólver.
Instrumento de prova: a gravata.
Corpo: o bancário.
Causa: o ciúme.
Criminoso: dois seios gordos.
Vítima: o amor.
Linha experimental: a mulher, revoltada com o seu parceiro, pega num instrumento mortífero (a arma) e despacha o retrato físico da sua paixão (o corpo). Como a parte perfurada pelo metal localiza-se perto do instrumento de prova, o sangue mancha a beleza que torna o sujeito de negócios respeitável.
Primeira conclusão: uma gravata representa muito para quem mexe com dinheiro.
Segunda conclusão: quem acerta na gravata de um negociante com um tiro, retira a honra a quem morre.
Terceira conclusão: uma mulher ferida no seu orgulho não tem medo de matar aqueles que ama.

[Paulo Ferreira]

A janela da ajuda

Da minha janela vejo a rua e a natureza que a rodeia. Se me esforçar um pouco mais, consigo ainda vislumbrar vários indícios de civilização, como automóveis, prédios, prostitutas e toxicodependentes. Mas, dentro desta sala, ninguém me consegue ver, porque não está cá mais ninguém para além de mim.
E eu observo a multidão na rua.
E eu reparo nos traços mais vincados da nossa forma de vida (um vagabundo que lava as mãos com a sua própria urina, por exemplo).
Será esta a sensação que aflige o Senhor omnipotente quando Ele se senta na sua cadeira solitária?
Serei eu uma espécie de deus mortal?
Na rua, duas mulheres trocam bofetadas e até a mim me dói.
E cá dentro nada se move.
Um deus não sofre assim.

[Paulo Ferreira]

As nuvens

As nuvens são uma ficção inventada (desnecessária, a repetição) por todos aqueles que gostariam de poder observar a lua com os próprios olhos mas que não conseguem.
Um gato que observe o céu sem conseguir atingir as estrelas não é um gato: é um homem cego. Os gatos não são como as pessoas, já que vêem onde mais ninguém consegue ver. Além disso, um gato que se preze capta o essencial da vida, afastando-se.
O óbvio: as pessoas não vêem no escuro nem captam nada que seja essencial. É por isso que um aspirante a felino que não consiga ver as estrelas, só pode ter barba e bengala de ajuda quotidiana.
Repare-se em Homero.


[Paulo Ferreira]

quinta-feira, maio 25, 2006

Isolamento

Tiraram-me o relógio. Pensavam que eu me podia suicidar com ele. É muito mau estar no isolamento sem relógio. O relógio dá ritmo ao nosso dia. Quando se está livre, vai-se ao telefone, à casa de banho, à cozinha, à estante, ao jardim, ao café, à mulher. O relógio di-lo-no. Na prisão, sem relógio, esses instintos tornam-se tumultuosos e confusos na cabeça, ainda que não possamos obedecer-lhes sempre. Eles são a liberdade. Um relógio é a liberdade.

- John Le Carré, A Paz Insuportável

[João Carlos Silva]

quarta-feira, maio 24, 2006

O som do amor

O som de um tiro: «boom».
A ferida que nasce a partir de um pedaço de metal é o amor, não a morte. Ninguém morre ou mata sem amor.
Se até a grande explosão, o big-bang, brotou do interior de um deus universal, por que razão seria diferente connosco? Seremos seres sentimentalmente neutros? Ou serão as balas munidas de vida própria?
«Boom» também é o som de um coração.
«Boom-Boom» (aos saltos).

[Paulo Ferreira]

Os cinco dedos

Cinco dedos tem uma mão que pertença a um corpo convencional. Mas podes sempre tirar um dedo ou dois a uma dessas mãos. De qualquer forma, aviso-te, uma mão de quatro dedos é considerada deficiente.
És livre de considerar o teu corpo (observa a tua mão) normal e de sentir que és alguém que se adaptou muito bem à ordem natural da tua sociedade, mas seria bom que nunca deixasses de acreditar na hipótese de um dia te considerarem aleijado e diferente.
A eugenia não nasceu na Alemanha.
Nem tudo o que sai das chaminés é fumo para te matar.
Certas mulheres põem borracha nos seios.
Observa os teus cinco dedos sem te rires. Quem sabe o que o futuro te reserva.


[Paulo Ferreira]

A discussão

Um adolescente discute com uma jovem mulher gorda no meio de uma rua. Para quem assiste a tal forma de conversação, o caso é simples: um corpo com peso a mais sente-se usado por um corpo de peso normal. Porém, porque a espécie não pode ser vista a partir de fórmulas tão generalizadas, convém acrescentar o seguinte: esta mulher gorda não é mais do que uma pobre coitada que nunca conseguiu obter uma relação amorosa a partir da sua própria beleza (visto dela nunca ter sido dotada), mas a partir do sexo. Ela só pode amar (tocar a pele de outrem) se oferecer a sua vagina aos caprichos de outros.
Mas toda a gente sabe que só se dá valor a uma oferta quando é exigida alguma forma de trabalho em troca. E, portanto, muito pode discutir aquela vagina necessitada porque o mancebo nunca a compreenderá.


[Paulo Ferreira]

A raiva

Um cão raivoso queria ter mais amigos sem, com isso, se tornar manso: tornou-se falso e começou a mentir.

[Paulo Ferreira]

Estertor:

Levar um soco de pugilista no estômago e, depois, soprar como se houvesse um fogo interno que precisasse de ser apagado.

[Paulo Ferreira]

A linha recta

Uma bala: a linha recta.
Podes não ter confiança no teu próprio corpo e precisares, por vezes, de andar às cambalhotas e aos tropeções. Mas nunca desconfies da direcção que uma bala leva: se ela for apontada ao teu coração, é o teu coração que sairá perfurado.
A linha recta é inimiga da espécie: procura o movimento que se encontra nas curvas, isto se quiseres sobreviver ao «clic» do gatilho.

[Paulo Ferreira]

Prostração:

Permanecermos sentados num sofá durante semanas, meses e anos, para, no fim de tudo, chegarmos à triste conclusão de que a vida nos passou ao lado.

[Paulo Ferreira]

o Estudante

Aquele estudante que se enfia durante intermináveis horas no seu quarto a sofrer, para depois sair para a rua de peitos esticados e de sorriso jovial, é um desgraçado. Mas não sabe. Para ele, sofrer apenas acontece quando se é traído ou quando se cai prostrado numa cama. Não sabe o rapaz que também ele sofre durante as tardes em que se fecha a sete chaves dentro de quatro paredes.
Meu caro caloiro, as olheiras não enganam os melhores médicos. Nem a solidão disfarçada de vaidade.

[Paulo Ferreira]

quinta-feira, maio 18, 2006

O estado das coisas


Perturbado*

*Jack London

[João Carlos Silva]

quarta-feira, maio 17, 2006

Problema

Naquela altura, o problema era eu só mascar pastilhas de mentol e tu só gostares do sabor a morango.

[Paulo Ferreira]

Três anos

De Almocreve das Petas. Parabéns.

[Paulo Ferreira]
[João Carlos Silva]

Soldadinho

Outro tempo viveria aquele desgraçado que partiu um pé a correr, se atrás dele corressem pastores alemães atiçados por sujeitos fardados. Mas, como nem de soldadinhos de chumbo ouviu este homem aleijado alguma vez falar, desaba num choro perturbante, como se chamasse pelo nome de sua mãe.

[Paulo Ferreira]

Destino: cosmos

Ao ouvir aquele bêbedo falar, o mundo percebeu que a história da literatura não poderia continuar a ser a mesma. Dizia o alcoolizado que os seus ossos lhe sorriam como pérolas estigmatizadas pelas cáries da sociedade.

[Paulo Ferreira]

terça-feira, maio 16, 2006

Manias (não gosto de andar de carro sem destino, como a nobre doutora Maria de Belém)

Respondendo ao apelo do Samuel, aqui deixo cinco manias minhas:

1- Julgar que estou condenado a morrer desgraçado. Cada doença que me afecta o corpo, faz-me pensar que vou morrer ( de cancro, etc.);

2- Beber café às oito da manhã e ficar com uma dor de barriga de duas horas;

3- Cumprir as minhas tarefas diárias num tempo pré-estabelecido. Por exemplo, se me demorar mais de trinta minutos a almoçar, começo a pensar que tenho o resto do dia estragado;

4- Não ver televisão por achar que sou um indivíduo demasiadamente ocupado e culto;

5- Deixar tudo o que me rodeia desarrumado (há quem se sinta bem no meio da desorganização).

[Paulo Ferreira]

Perto do sanatório

Gosto muito das sinopses dos livros de Robert Walser. Repare-se na beleza: «Foi encontrado morto, na neve, por um grupo de crianças no dia de Natal de 1956, quando dava um dos seu habituais passeios.»

[Paulo Ferreira]

Evolucionismo

A dra. Steinbeck matava macacos com uma única e certeira martelada na nuca.
Avanços experimentais, diria ela, limpando o sangue dos lábios.

[Paulo Ferreira]

segunda-feira, maio 15, 2006

O homem e o dragão

O pequeno homem queria medir forças com um dragão, mas não conseguia, porque lhe faltava tamanho (ou astúcia) para derrotar tão nobre animal. Mesmo assim, e sem se esquecer de que toda a sua vida fora uma maré de lamentos e de pequenas derrotas, o pequeno homem, um dia, ganhou coragem e atirou-se à besta, acabando por morrer queimado e sozinho.

[Paulo Ferreira]

O ajudante


Robert Walser

[Paulo Ferreira]

Esfera

Uma criança que cresça a jogar ao berlinde não tem a mínima noção de que, mais tarde ou mais cedo, ela própria se tornará na pequena esfera de vidro com que se habituou a brincar.
E porque a idade dá cabo da saúde de todos os que vivem, se percebe que uma criança que cresce nunca ganha real noção da forma cada vez mais arredondada da sua corcova.

[Paulo Ferreira]

Drama dos tempos modernos

O indíviduo que se dobra até ao chão.

[Paulo Ferreira]

Para um novo ditado

Quando um homem quer, outro homem envelhece e outro homem fica corcunda (até morrer).

[Paulo Ferreira]

Centro da terra

No meio da multidão poderás sempre encontrar algo que te cative, como os pés bem delineados de uma adolescente ou o frágil sorriso de uma velhota que se assemelhe a alguém de quem gostes. No entanto, nunca te esqueças do barulho.

[Paulo Ferreira]

O sapo que se fez homem

Por não ter tido acesso à internet durante estes dias, só agora decobri que um dos meus blogs preferidos fez link para um post meu. Estou corado.


[Paulo Ferreira]

sexta-feira, maio 12, 2006

quinta-feira, maio 11, 2006

Ascese

Duas crianças incendiaram o corpo de um mendigo e, durante sete dias, alimentaram o fogo a gasolina e a petróleo. Dir-se-ia que, em pouco menos de uma semana, duas crianças fundaram uma nova religião.

[Paulo Ferreira]

Rugas

Uma senhora velha (porque nem todas as senhoras são velhas) queria voltar a ser bela e, por conseguinte, jovem: arrancou os dentes do seu cão e com eles fez um fio. Embora tenha continuado velha, a senhora ficou estranhamente bonita.

[Paulo Ferreira]

quarta-feira, maio 10, 2006

Mergulho

Correr para o mar: um mergulho.
Podes saltar de uma ponte sem que ninguém se preocupe com a tua sobrevivência, mas, se te atirares ao mar apenas para um mergulho, logo uma velha gritará pela tua alma.

[Paulo Ferreira]

O esquerdo e o direito

Vês melhor com um olho do que com o outro? Compra uns óculos que te normalizem a visão. Mas não te preocupes muito com a forma como uma retina se pode adaptar ao vento, caso contrário, ficarás cego.


A preocupação mata mais do que uma visão dessincronizada. Esta é uma sentença que te deixo.

[Paulo Ferreira]

terça-feira, maio 09, 2006

Engano

Um sapo queria tornar-se príncipe: beijou uma mulher e arrotou. Fez-se homem.

[Paulo Ferreira]

O novo homem

Um homem velho queria tornar-se novo: deu um tiro no cérebro e voltou a nascer.

[Paulo Ferreira]

segunda-feira, maio 08, 2006

Fila de espera

Na fila de espera para a entrada do autocarro, um homem diz para outro: «Olha se aquela mulher que vai a correr fosse a tua!». Passados uns segundos, o homem que alertara o outro começou a soluçar, pensando que, ao olhar para a mulher que passara, atingira uma felicidade imaginária, típica dos que sabem que «aquilo» nunca lhes acontecerá.

[Paulo Ferreira]

Fragmentação

Até ao dia em que aprendeu a dividir, o rapaz restringiu-se a somar e a subtrair. Depois, não mais o seu mundo continuou o mesmo. As somas e as subtracções deixaram de lhe interessar e a realidade começou a parecer-lhe cada vez mais fragmentada. Ou seja: o rapaz tinha sete anos e já percebia que EU a dividir por TU dava MIM (que é sinónimo de SÓ). Essa é que é essa.

[Paulo Ferreira]

sábado, maio 06, 2006

autobiografia 9

Certo miúdo tentava apanhar pequenas rãs no parque, imitando os colegas mais ariscos. Falhava, falhava e falhava, enquanto os outros coleccionavam até às sobras. Até que um dia conseguiu apanhar a sua primeira rã. E assim ficou perante o resto dos rapazes, que, calados e impressionados, contemplavam a rã prostrada nas mãos em concha. Curiosamente, só aquele miúdo não conseguira perceber que apenas apanhara a rã porque esta estava morta. E assim segurava alegremente aquele cadáver.

[João Carlos Silva]

autobiografia 8

Um rapaz, furioso de amor e rejeitado, resolveu enviar uma carta anónima à sua amada, chamando-a de todos os nomes insultuosos possíveis.
A rapariga apaixonou-se pelo hipotético e anónimo remetente e escreveu-lhe de volta uma carta de amor.

[João Carlos Silva]

O editor e o escritor

«É uma história muito antiga», disse-lhe o editor, devolvendo o manuscrito.
O escritor, sorriu para si próprio e dirigiu-se à estação dos correios, meteu o manuscrito do romance num envelope almofadado, enviando-o para o futuro.


-José Viale Moutinho, Hotel Graben

[João Carlos Silva]

Complicações

Num livro de 1985, Maria de Lourdes Pintasilgo (por quem sempre tive, aliás, grande simpatia) explica que não se sente bem com o termo «mercado». A esse termo, contrapõe - para a mesmíssima coisa - a palavra «comércio». «Porque assim, parece que ambas as partes ganham algo com o negócio», diz. O que diz muito sobre nós. Aliás, esta complicação portuguesa em fazer coincidir os nomes com as coisas talvez seja explicada pela nossa já antiga complicação em fazer seja o que for.

[João Carlos Silva]

sexta-feira, maio 05, 2006

Segunda parte

A segunda parte da tua cabeça, aquela que mais se aproxima do rabo, a nuca, está prestes a embater contra uma parede de tijolos e tu, como jovem perfeito que és, nada fazes para te salvares ou redimires. Em breve serás pedra e cal mas nada fazes. A tua cara não quer saber dos tijolos nem das feridas que eles provocam. Morre (com um ponto de exclamação imaginário).

[Paulo Ferreira]

Fogo

Uma mulher queria tornar-se mais atraente para o marido: esfregou a cara em gasolina e deitou-lhe fogo.

[Paulo Ferreira]

terça-feira, maio 02, 2006

Gentes de outrora

Meu irmão caminha de mãos atrás das costas,
quando come alarga os cotovelos sobre a mesa,
aperta os sapatos apoiando os pé
na cadeira e se lava o rosto
lamenta-se, bufa, treme de frio;
o bigode está sempre direito, usa o chapéu na cabeça, mesmo na cama,
e quando o chamam volta-se de uma só vez
como uma estaca.
Ficaram-lhe os vícios das gentes de outrora:
acende os fósforos nas botas
e tem o cabo da colher fechado no punho.

Por vezes detém-me em pé a fixar
um ângulo do quarto, de olhos cerrados
e dispara peidos sonoros
como os de nosso pai.


Tonino Guerra, O Mel

[Paulo Ferreira]

Nota para um bom começo de noite

Lembrar de pensar nos martirizados e nas crianças.


[Paulo Ferreira]

segunda-feira, maio 01, 2006

Nosferatu


A maior casualidade que advém do facto de se conhecer o passado, o presente e o futuro é a de se viver uma vida absolutamente lamentável, repleta de tédios, de horas mortas e, quiçá, de infinitas insistências na não utilização de um pénis rejeitado pelo mundo.

[Paulo Ferreira]

Jean-François Revel (1924-2006)



[Paulo Ferreira]