quinta-feira, abril 13, 2006

A fala perpétua



Considero que a faculdade da fala, a par do direito ao voto, é uma das coisas mais sobrevalorizadas que temos entre nós. Aliás, tenho mesmo por garantido que a fala é um dos elementos verdadeiramente supérfluos do homem. Senão repare-se: quase toda a gente comunica por gestos quando está a dizer algo. Com ou sem fala, a representação mímica seria a mesma, apenas mais vigorosa. Mas, como dizia, tal como o voto, a fala é realmente sobrevalorizada. É encarada como qualquer coisa de: «este faz, aquele faz... então eu também vou fazer, mas sou parvo ou quê?», e é aí que se dão os disparates. Votar por votar, ou falar por falar, apesar de serem custos louváveis da liberdade, normalmente não trazem nada de bom.

Repare-se que a maioria das coisas boas da vida se fazem sem falar. E aqui, para evitar perder a audência católica, devo explicar melhor. Poder-se-á contrapor: «e estar com os amigos»? Não é uma coisa boa da vida na qual se deve falar?» Não necessariamente. Mas esta afirmação, entre homens, tem mais eco do que entre mulheres. Pode-se, até, verificar dois vértices opostos do espectro dos «modos de vida»: de um lado, os homens que fumem e bebem enquanto vão para o café ler em conjunto; do outro, os homens que fumam e bebem na discoteca enquanto dançam como se não houvesse amanhã. Em nenhum dos encontros se encontra a necessidade da fala.

Lembro-me de um homem que, numa tasca, sempre que se embebedava, insistia numa promessa que se repetia interminavelmente em todos os dias de bebedeira. «Já não falo mais!», gritava o pescador a que chamavam «o Buda». Fitava um ponto invisível, que se prolongava no infinito espaço em que os olhos de vinho se perdiam. «Mais não digo», gritava, e fazia os outros saberem, em especial os clientes novos, que havia desistido da fala. Estava cansado de dizer fosse o que fosse, já que nunca teria um impacto realmente interessante no mundo em que vivia. «Para dizer merda, mais vale não dizer nada», concordavam outras vítimas da embriaguez, acenando com uma cabeça um pouco mais sóbria. Os clientes novos concordavam com «o Buda», e tentavam seguir o exemplo - talvez aí tenha nascido o acto de beber sozinho e calado. Mas aqueles clientes mais antigos, que conheciam os desfechos das histórias, sabiam melhor. No dia seguinte já lá estaria «o Buda», para uma nova caminhada para a embriaguez: «hoje vou beber e depois calo-me para sempre!». E aplaudiam todos, urrando. «O Buda» morreu há algum tempo. Nunca se conseguiu calar.

[João Carlos Silva]

1 comentário:

Anónimo disse...

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