domingo, setembro 14, 2008

Livro Negro



O «novo filme» de Paul Verhoeven andou por uns tempos na boca do mundo e das publicações do mundo do cinema, durante os passados dois anos. Ora, Verhoeven nunca seria um nome para me despertar qualquer tipo de fidelidade. Não que não guarde alguma simpatia para com Basic Instinct (em especial para com Michael Douglas, um actor «in the making», e não para a clássica Sharon Stone) ou Robocop, um filme de infância, mas a verdade é que nunca esperei muito do realizador holandês. Aliás, aquilo que posteriormente li acerca dos seus prometedores projectos pré-Hollywood pouco compensava o facto de ter experiências demasiado comerciais e pobrezinhas de argumento com o senhor. Penso que se pode resumir uma boa parte do seu cinema por esta expressão: falta de classe.

Em Livro Negro (Zwartboek no original), Paul Verhoeven sabe fintar esse aspecto do seu cinema e trazer algo relativamente novo ao portfolio, pelo menos à parte a que eu já assisti desse repertório. Este filme de 2007 traz algum glamour e bastante ordem aos argumentos algo espalhafatosos de Verhoeven, com a introdução de uma moral, ainda que light, e de alguma nostalgia pelos filmes clássicos de espionagem e sobre a Segunda Guerra Mundial.

Rachel Stein (a bela Carice van Houten) é uma rapariga judia, antiga cantora, a viver na clandestinidade na Holanda em 1944, já bem «dentro» da Segunda Guerra Mundial, quando um bombardeamento destrói a casa dos seus hóspedes. Para fugir dos alemães e tentar encontrar novo albergue, Rachel acaba por confiar num agente da polícia que revela estar ligado à Resistência e que lhe indica um caminho pelo rio, que esta seguirá depois da reunião com a sua própria família e outros judeus ricos. No final, este caminho revela-se uma armadilha, quando um oficial alemão leva um pequeno grupo de soldados ao encontro dos judeus para uma execução em pleno rio, seguido de saque. Sem sítio para onde ir, Rachel acaba por ser miraculosamente salva e ajudada por um grupo da verdadeira Resistência holandesa, que lhe dão um passaporte com uma nova identidade: Ellis de Vries.

É com esta nova identidade que começa realmente a «acção» de Livro Negro. Dona de potencial para muito mais do que trabalhar na fábrica, Ellis acaba sendo integrada num grupo executivo da Resistência, numa célula liderada por Gerben Kuipers, que também é dono da fábrica que serve de fachada. É numa missão que Ellis conhece, acidentalmente, Müntze, um oficial nazi (interpretado por Sebastian Koch, que muitos reconhecerão como sendo o dramaturgo de A Vida dos Outros) que aos poucos se revela, mais do que um soldado «derrotista», um alemão desiludido com a guerra. É também Müntze que será o alvo da missão de infiltração de Ellis, com vista a resgatar o filho de Gerben Kuipers, acabado de ser capturado.

Livro Negro começa por ser uma história banal típica de Verhoeven, com uma personagem a ser apanhada pela roda da Fortuna e envolvida num emaranhado de relações e traições maior do que ela mesma, tendo apenas a atenuante do contexto emocional do Holocausto. Mas, aos poucos, o filme revela-se muito mais do que isso. A viagem de Ellis de Vries ao interior da high life dos oficias nazis dá azo à contrução de um argumento, e de um pano de fundo, com muita classe, digna de um verdadeiro filme de espionagem e traições, em que nunca se sabe muito bem quem é de confiança e quem não é. Falta-lhe, talvez, um pouco mais de perigo, já que não sentimos a vida da personagem principal assim tão em perigo quanto seria possível fazer parecer neste contexto. Nesse aspecto, a temeridade de Rachel Stein/Ellis de Vries é pouco real. Mas não falta, certamente, o erotismo desta «Mata Hari» da Segunda Guerra, que assenta como uma luva no ambiente ocioso das folgas dos oficiais da Wehrmacht e das cantoras que, como Ellis, os entretiam.

Há, sobretudo, uma tensão muito bem conseguida, que é aquela que existe entre Ellis e Franken, o oficial que assassinou a sua família naquela noite e que ela tem de encarar não como judia mas como Ellis de Vries, a cantora holandesa. Após vomitar de nervosismo, ela lá volta para o pé dele, que está ao piano, e... canta. Uma tensão bem conseguida e perfeita para o argumento do filme. No fim, fica uma excelente impressão de Paul Verhoeven e do cinema fora de Hollywood, que também consegue criar um ambiente histórico credível e, acima de tudo, cinematográfico. Os meus aplausos para o clássico. Livro Negro, embora não seja A Lista de Schindler ou, mais flagrante, O Bom Alemão, merece atenção e merece respeito. Entretém e não tenta moralizar. É um filme de espionagem bem bom, ponto. Isso para mim basta.

1 comentário:

Mauro Bartolomeu disse...

Tb não sei se Verhoeven seria digno de "despertar algum tipo de fidelidade", mas trazer à baila Basic Instinct e Robocop e não se lembrar dos questionamentos filosóficos abertos por Total Recall, Starship Troopers ou Hollow Man é mto injusto, para dizer o mínimo. Qto a Zwartboek, boas considerações.