sexta-feira, abril 07, 2006

O neo-realismo de uniforme vestido

«O artista (frase velha) não pode vestir uniforme. O protesto, todavia, deve estar atento a um risco: por um lado, a gratuitidade, por outro, o estímulo a que a sacralização mude apenas de rosto e de objecto.»

- Fernando Namora, Encontros


Tornou-se costume dizer-se que, para um escritor neo-realista, a «causa» prevalece sobre a «forma», que o «conteúdo» prevalece sobre a «estética». Ora, admitindo que autores neo-realistas como Fernando Namora (1919-1989) possam ter sempre dado primazia a algumas das mensagens políticas e sociais vindas, muitas vezes, de ambientes tão propícios ao ócio e ao lazer como a saudosa União Soviética, a verdade é que não deixa de me incomodar esta visão um tanto simplista. Leiam-se, por exemplo, obras como Cidade Solitária, Resposta a Matilde ou O Rio Triste (todas de Namora). Nestas obras que referi, será muito difícil encontrar as temáticas mais saboreadas pelas penas dos escribas da crítica social. Além disso, quem souber ler, reparará que todos estes livros são muito bem escritos. Reconheço, no entanto, a importância que os neo-realistas deram às suas lucubrações intelectuais viradas para o Leste Europeu. Reconheço que muitos dos sonhos ideológicos a la «Grande Salto em Frente» (Mao Tse-Tung) faziam parte do imaginário neo-realista. Reconheço que o ambiente salazarista afectava profundamente o espírito da conhecida geração de 40. O problema é que também os neo-realistas reconheciam que trabalhavam tendo em vista certas causas políticas indispensáveis (causas essas sempre viradas para uma esquerda que, hoje, se englobaria dentro do esquema alter-mundo existente dentro de um Bloco de Esquerda). Por conseguinte, dizer-se uma verdade que já todos sabem, como se se quisesse desmistificar algo que não sente necessidade de o ser, torna-se absurdo. Assim, não me incomoda o facto de, nos nossos dias, se andar a dizer que o neo-realismo dava grande importância a causas sociais e políticas, por exemplo, de contestação. Incomoda-me mais o facto de se acreditar que a geração neo-realista não dava importância ao modo de fazer a escrita. Escrevendo com conhecimente de causa, Fernando Namora foi um grande escritor. Vergílio Ferreira, que começou por abordar temáticas neo-realistas, foi outro grande escritor (aliás, o meu preferido).


[Paulo Ferreira]

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