sexta-feira, março 10, 2006

Errar é humano


Nelson Rodrigues costumava dizer que o que faz um homem é a soma das suas obsessões. Já eu advogo uma tese algo diversa: um homem, ou mulher, conhece-se através dos seus erros. Na realidade, não reprovo erros. Um erro, um defeito, é algo maravilhosamente inimitável. Desde que não seja um defeito que nos torne a vida num Inferno. Já uma mulher torna-se especialmente atraente, única, através de um pequeno defeito aqui ou ali. Por outro lado, o pescador reformado que coxeia desde tempos imemoriais tem na sua perna uma prova de vida, uma perna defeituosa que, mesmo tendo a sua origem numa batalha com um qualquer peixe (e também mesmo nós sabendo disso), preferimos mergulhar na memória de um passado que engole detalhes, mas levanta lendas.

São históricos certos erros. Mesmo aqueles erros que só com algum tempo volvido se apresentam como erros. Neville Chamberlain, por exemplo, ao voltar para Londres em 1938, depois de Munique, sorriu como nunca mostrando o seu triunfo diplomático na mão. Não duraria muito tempo o seu sorriso, mas naquele dia que julgou auspicioso sorriu abertamente. Vestira-se como um gentleman, com roupas de vitória, mas na verdade trazia da Alemanha uma das últimas grandes derrotas britânicas do século. Ao vestir-se para triunfar diplomaticamente sobre Hitler, dava uma dimensão flagrantemente ridícula ao seu próprio erro.

Os erros na escrita têm, também, qualquer coisa mística. Lembro-me do dia em que escrevi «manti» quando devia ter escrito «mantive». A palavra correcta sempre me acompanhou, mas naquele dia o «manti» soou-me brilhantemente correcto, passando impune por debaixo dos olhos até ao momento da humilhação pública. Não é sem razão que alguém que tenha por hábito escrever tenha um medo de morte da exposição dos seus devaneios. «A vergonha tem bigodes», dizia um tio mais sábio. Não sendo propriamente Confúcio, esse tio sabia o que dizia. E a vergonha de um erro, de errar, é tão velha quanto os homens. Errar é, de facto, humano. E não há nada que mais me comova do que aquela minoria positivamente discriminada que são os homens que nunca erraram. Não é por acaso que ninguém atirou a pedra à prostituta naquele belo dia de Sol desértico.

[João Carlos Silva]

1 comentário:

Anónimo disse...

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