sábado, abril 19, 2008

A longa noite de Elie Wiesel



«Nunca mais esquecerei esta noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada». Embora esta não seja a primeira frase do livro de Elie Wiesel, Noite, bem que podia sê-la. Wiesel, judeu romeno, foi apanhado na vaga de deportações, juntamente com a sua família e muitos dos seus compatriotas (na sua grande maioria os judeus, tal como ele). As autoridades romenas, lideradas por Antonescu e pelos fascistas, cedo se juntaram à missão dos nazis. E é assim que os romenos são daí enviados para Auschwitz-Birkenau, Buna e, finalmente, Buchenwald, numa viagem de terror por alguns dos mais terríveis campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. Segundo diz, numa tenebrosa verdade, um outro prisioneiro de Auschwitz: «Tenho mais confiança em Hitler do que em qualquer outro. Foi o único que manteve as suas promessas, todas as suas promessas, ao povo judeu». Essas promessas eram promessas de morte.

O tema do livro é óbvio. A morte é, sem dúvida, o grande arrepio que atravessa o livro. Mas esta morte não é apenas uma morte física, um genocídio. A morte mais importante, mais grave, é aquela que se dá junto de cada um dos homens presos, uma morte da humanidade, da moral, da ética e de Deus. Como diz François Mauriac no prefácio a Noite: «a morte de Deus na alma daquela criança que descobre, de uma assentada, o mal absoluto». A figura mais representativa das interrogações judaicas é o Maceiro Moché, personagem que transmite estudos cabalísticos a Elie quando este entra na adolescência (nunca dela sai, aliás, já que tinha 16 anos quando foi libertado de Buchenwald). Moché explicava ao narrador «que cada pergunta possuía uma força que a resposta já não continha». Referia-se, claro, às perguntas que se dirigiam a Deus quando se deparavam com a crueldade nazi. «O homem interroga e Deus responde. Mas nós não compreendemos as Suas respostas. Não podemos compreendê-las. Porque elas vêm do fundo da alma e lá permanecem até à hora da morte. As verdadeiras respostas, Eliezer, só as encontrarás em ti mesmo», diz o velho. Moché, aliás, é simbolicamente o judeu «que escapou» e vem avisar os seus conterrâneos do que se passa nos campos. Ninguém quer acreditar nele. Ninguém lhe dá ouvidos, julgando-o louco. Mas Moché tinha razão.

Noite é um livro violento. Um romance que não é romance. Uma narrativa que não tem qualquer imagem bonita. Um enredo sem recompensa ou segredo. Só morte. Só brutalidade. Do princípio ao fim do livro. As cenas mais terríveis são, seguramente, as do crematório, e especialmente as de carrinhas cheias de pequenos cadáveres de crianças atiradas às chamas. Elie Wiesel diz sobre isto o que todos nós diríamos: «Nunca mais esquecerei aquele fumo. Nunca mais esquecerei as pequeninas caras das crianças cujos corpos eu tinha visto transformarem-se em espirais sob um azul mudo. Nunca mais esquecerei estas chamas que consumiram para sempre a minha fé». O mesmo quando é enforcada uma criança no campo, que, pela sua leveza, não morre de imediato e se debate na ponta da corda durante meia hora. Elie e os outros prisioneiros são obrigados a assistir, para desobedecer mais: «Atrás de mim, ouvi o mesmo homem perguntar: - Onde é que Deus está, então? E eu sentia dentro de mim uma voz que lhe respondia: - Onde é que ele está? Ei-lo - está aqui pendurado nesta forca... Naquela noite, a sopa sabia a cadáver...». Afinal, Deus pode morrer. Foi assim que morreu o Deus de Wiesel.

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