sábado, dezembro 15, 2007
Doblagens revolucionárias
Os desenhos animados dobrados são a maior parvoíce jamais criada pelo ser humano. É qualquer coisa como pintar sorrisos nas figuras do Guernica do Picasso. Apercebo-me disto no momento em que dou com o facto deste novo filme de animação com abelhas vir a ser dobrado para português. Ora, por duas coisas isto é terrível: primeiro, porque perder a oportunidade de ouvir Seinfeld (mesmo numa situação que não traz grande piada) é torturante para uma criança no futuro; segundo, porque ensina às crianças o dever de «não ler» as legendas, logo condenando-as às telenovelas do Tozé Martinho; terceiro, porque simplesmente trata as crianças como estúpidas.
Veja-se agora um PREC mais apertado no controlo televisivo. Imagine-se, por exemplo, o que seria ver desenhos animados do Tom Sawyer com controlo popular. «Desenhos animados para o povo», justificar-se-ia. É preciso dar ao povo as ferramentas para compreender o mundo e os desenhos animados. E, já agora, que também não custa nada, aproveita-se para reeducá-lo.
Não gostaria de ouvir Tom Sawyer, por exemplo, a convencer os amigos e vizinhos a pintar a cerca da tia Polly porque «o trabalho para bem dos outros dignifica o homem e a sociedade». Já não seria uma cena genial em que o Tom convence os amigos a pintar a cerca (terrível tarefa) enganando-os pela inveja - diz que prefere fazer aquilo a brincar - mas sim uma cena em que Tom realmente prefere trabalhar do que brincar. «Eh Tom, que estás a fazer?» «Estou a pintar a cerca.» «Deve ser muito chato.» «Não. É óptimo e dignificante, como nos ensinou o Camarada Vasco.» «Porque não me disseste isso antes? Dá-me já uma trincha, Tom».
Seria feio, isso sim, ver o tratamento dado a Huckleberry Finn. Huck é um rapaz preguiçoso e sem maneiras. Come e dorme quando pode e quando quer, sem regras mas sempre pela lei da necessidade. Vem de uma família destroçada e, logo, aprendeu a viver segundo as suas próprias regras. Uma boa alma, no fundo. Mas Huck chegaria ao pé do Tom e da cerca e começaria o controlo operário. «Eh Tom, estás a pintar a cerca?» «Claro, o Camarada Vasco quer isto pintado até ao fim do dia.» «Eu não faço isso, vou mas é jogar ao pião». E pronto, tudo está bem quando acaba bem. Huckleberry Finn, no fundo, é a representação de um perfeito reaccionário, afecto a cada um de nós, por razões que variam de pessoa para pessoa. Todos nós somos reaccionários, mas só uma parte escapa ao controlo.
No fundo, é o que se passa com os desenhos animados. Em todos eles, há uma ou outra personagem que, mesmo com as doblagens da década de 70 portuguesa, escaparia ao controle. Caso do Huck, que não deixa levar pelas palavras propagandistas de Tom, claramente alterado pela controleira «tia Polly». Corajosa e louvável atitude que não teria, por exemplo, o rato Pompom, de Dartacão. Rato esquivo e matreiro, rapidamente entregava os Moscãoteiros à PIDE do Cardeal Richelieu. Enfim, atitudes contra-revolucionárias.
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2 comentários:
ahahaha, muito bom!
Foi uma ideia parva tornada texto. Imaginação matinal, penso eu... :)
Um abraço.
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