domingo, novembro 05, 2006

A noite

O homem medieval acreditava em mitos e lendas que, para o homem de hoje, são susceptíveis de alimentar boas anedotas de café. No entanto, na Idade Média, espaços como a floresta estavam relacionados com o desconhecido, com o misterioso, com o funesto. A noite era a altura do dia em que os medos invadiam os espíritos amedrontados . Ou seja, naquela altura, o atraso empírico era grande e as fronteiras por ultrapassar eram muitas. Só no século XIV é que se começam, por exemplo, a refutar as concepções cristãs da Terra plana.

Pois bem, eu que não sou um homem medieval, no sentido cronológico do termo, sinto-me, por vezes, ligado àquela época. Principalmente, quando a noite chega. Para mim, a noite é a vivência de vários mitos ao mesmo tempo. Em criança, o fim da tarde significava o aparecimento da mula de sete cabeças, o demónio que se escondia atrás dos postes de electridade. Mais tarde, outros monstros apareceram com a noite. Refira-se, no entanto, que, à medida que o corpo foi crescendo, os monstros metamorfosearam-se. Comecei a temer discotecas, homens de pouca temperança, mulheres despudoradas, enfim, ambientes sociais que implicassem certa ciência. Como não sou muito ligado a mezinhas, cheguei à conclusão de que, para indivíduos como eu, a única solução eficaz para combater a noite seria ficar em casa. E assim tem sido. Tranca-se a porta de casa e começa-se a ler, a escrever, a namorar. Os caros caderninhos pretos que ficam sempre bem ao homem pretensioso, têm-me dado jeito. Os livros que não se podem ler na rua também. Porém, de certa maneira, a reclusão caseira não consegue ser total, uma vez que os medos e as memórias persistem.

Há quem diga que é no escurinho do quarto que o sentido de humilhação mais se dá a mostrar. De certo modo, concordo. Todavia, é bom não esquecer que a noite, para além de ser violenta para os que não convivem, humilha. Embora se possa afirmar que, se o escurinho do quarto é o espaço de eleição para a memória e a lembrança do que fracassa, a noite e a rua são os espaços onde essas memórias acontecem.

As definições de noite, na maior parte dos dicionários, devem ser, mais coisa menos coisa, estas: f. Espaço de tempo que vai desde o crepúsculo da tarde até o crepúsculo da manhã. Escuridão. Noitada. Fig. Trevas do espírito. Ignorância. Noite velha, alta noite. Gosto de pensar em noite como metáfora para uma certa realidade. Treva de espírito e ignorância, escuridão e cegueira. Insónia, desvelo. Tudo isto é noite. E eu sou o pássaro fissirrostro, uma pessoa que só aparece de noite, mas onde? Não na rua, não na paisagem social. No fundo, sou o pássaro de bico fendido que se encontra com os lençóis, com a caneta. E nem sempre.

[Paulo Ferreira]

20 comentários:

Miguel Vaz disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
a causa das coisas disse...

Caro Miguel Vaz,

Se o dia não me tivesse dado cabo do espírito, refutaria o que acabou de dizer. Nada do que (pouco) disse sobre o assunto pertence ao tal grande mito urbano de que fala. basta ler Paul Zumthor ou «Da Terra Plana ao Globo Terrestre», de Randles para saber que o conceito de Terra Plana estava presente no pensamento medieval. A Expansao e os Descobrimentos é que abriram as portas .

Volte sempre.

Miguel Vaz disse...

By the time of Pliny the Elder in the 1st century, however, the Earth's spherical shape was generally acknowledged among the learned in the western world. Around then Ptolemy derived his maps from a curved globe and developed the system of latitude, longitude, and climes. His writings remained the basis of European astronomy throughout the Middle Ages, although Late Antiquity and the Early Middle Ages (ca. 3rd to 7th centuries) saw occasional arguments in favor of a flat Earth. The modern misconception that people of the Middle Ages believed that the Earth was flat first entered the popular imagination in the nineteenth century.

Como pode ver, basta uma rápida consulta na Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Flat_Earth) para encontrar numerosas provas do "mito da Terra Plana".
Mas se mesmo assim não acreditar - realmente, a Wikipedia não é a melhor garantia de credibilidade - consulte o livro “Da falsificação de euros aos pequenos mundos” de Jorge Buescu (http://www.gradiva.pt/livro.asp?L=2126), que contém um delicioso capítulo sobre o assunto.

Cumprimentos!

Anónimo disse...

Não pretendo alimentar uma discussão com quem quer que seja sobre esta temática. além disso, n gosto do tom com que expoe o lexema «acreditar». no entanto, se quer ler sobre o assunto, leia os autores que atrás citei. principalmente randles.

Anónimo disse...

mas se for aos mais generalistas, como le goff ou duby, também é capaz de encontrar algo sobre o assunto. mas, como para o caro leitor o assunto parece ter que ver com crença, ainda lhe posso adiantar outros como huizinga. ou entao vá ver os trabalhos de ptolomeu e esclareça esta pobre mente que apenas aprendeu sobre o assunto durante uns anitos.

Miguel Vaz disse...

Não quis, de qualquer modo, ofender o Paulo Ferreira com a palavra "acreditar". Perdoe-me se fui mal interpretado, sou um mero aprendiz de engenheiro e pouco sei de gramática. No entanto, Jesus Cristo também não percebia nada de finanças e não consta que tivesse biblioteca... Mas adiante.

Não tem nada a ver com crença: tem a ver com factos.
O "Mito da Terra Plana" está explicado por toda a Internet. O mito nasceu no século XIX com um livro de ficção de um escritor chamados Washington Irving sobre Colombo. A partir daí, duas ou três referências bastaram para que o mito começasse a circular e se transformasse em verdade. Chegou até a estar presente em diversas Enciclopédias até ser corrigido.

Pode ter a certeza: a Terra nunca foi Plana!

Anónimo disse...

Caro Miguel,

Nada do que tenho falado tem que ver com Colombo. O mito da Terra plana não nasceu no século XIX, até porque estava plenamente enraizado no pensamento cristão da época medieval (e o cristianismo era indissociável de Idade Média). Tanto que as teorias que vieram a refutar a Terra Plana foram durante largas décadas condenadas pela Igreja. Colombo, realmente, é mito. A Terra Plana não.

Anónimo disse...

Não querendo menosprezar o que poderá ter lido, mas o que afirmou sobre o romance do século XIX é absurdo. Basta consultar a historiografia recente para perceber que não tem qualquer tipo de razão. Buesco não é o autor mais versado na matéria. A Terra Plana é um assunto bastante sério, que deveria ser deixado de parte por jornalistas com tiques de cronista. Têm que se ler os livros e, para quem tem pachorra, consultar as fontes.

É salutar o seu interesse pela matéria, no entanto, não pode partir de pressupostos errados e, pelos vistos, de um certo desconhecimento sobre a matéria. O tempo, o espaço, a natureza, eram tudo coisas que tinham carácter muito distante daquilo que era crença no século XIX. Consulte verdadeira história.

De qualquer forma, não deixe de se importar com as matérias, tente é aprofundar o seu saber com outra substância.

Anónimo disse...

ah, e a Terra realmente nunca foi plana. Mas durante muitos tempo se acreditou nisso. Até parece brincadeira falar sobre estas coisas, pelo menos se estivessemos em ambiente académico, seria uma verdadeira piada.

Miguel Vaz disse...

Caro Paulo,

O "Mito da Terra Plana", ou seja, a crença que na Idade Média era ideia geral que a terra não era esférica, nasceu dessa fantasia de Washington Irving (o mesmo que escreveu a "Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça"). Eram muito poucos os intelectuais que defendiam uma Terra plana e hoje sabe-se que a maioria dos seus escritos só foram descobertos por volta do século XVI (o caso de Lactâneo, por exemplo).

A Igreja Católica nunca defendeu uma Terra Plana. Defendeu sim a teoria geocêntrica de Ptolomeu, ou seja, admitia que o Universo girava à volta da Terra (coisa diferente). Até porque Ptolomeu já tinha partido do princípio que a Terra era esférica (aliás, foi Ptolomeu o criador do sistema de latitudes e longitudes). São coisas diferentes!
A única objecção da Igreja era relativamente aos povos que habitavam nos Antípodas. Havia a dúvida se seriam descendentes de Adão (!).

Mas as referências continuam. Na Wikipedia estão disponíveis várias gravuras da Idade Média que descrevem a Terra... como um globo!
Até Dante, na sua "Divina Comédia" (obra MEDIEVAL de referência) retrata a Terra como... uma esfera!

Veja, leia, comprove: a Terra nunca foi plana!

Cumprimentos!

PS. http://www.projetoockham.org/historia_terraplana_1.html
http://en.wikipedia.org/wiki/Flat_earth

Miguel Vaz disse...

Jorge Buescu não é jornalista. É "só" professor universitário no Instituto Superior Técnico.

Anónimo disse...

não me referia a buesco, mas a josé rodrigues dos santos e a outros vultos da sociedade das letras. buesco não é o mais versado nestas matérias, afirmo-o outra vez. talvez não tenha sido bem explicíto na forma como escrevi.

Anónimo disse...

sem o querer ofender, não me queira ensinar. não abordo o assunto de outra forma mais concreta, uma vez que não é este o espaço adequado.

Anónimo disse...

Dante não é autor medieval de referência. Assim como Petrarca, a outro nível, também nunca poderia ser.

Miguel Vaz disse...

Fico bastante triste com a arrogância demonstrada pelo Paulo Ferreira. Mas enfim, já lhe mostrei provas suficientes que nunca na Idade Média se achou que a Terra era plana. As referências abundam na internet. O Paulo Ferreira apenas me respondeu com o nome de três ou quatro personagens, sem mais referências.

Não quero ensinar ninguém, apenas quero fazer ver que o Paulo Ferreira não tem razão naquilo que continua incompreensivelmente a defender.

Anónimo disse...

Não vale a pena responder a isso. O senhor não tem a mínima noção do que é trabalho histórico ou sequer sobre história de mentalidades e, coisa importantíssima, cortes epistemológicos. As coisas que disse não deixam de estar, de certa forma, correctas, uma vez que falou em nomes eruditos (mesmo assim, poderia discutir as concepções de Ptolomeu ou de Pitágoras, ou de Lactâncio, sem problemas). Acontece que a cabeça não está para isso. Acredite no que quiser, está no seu direito. Ninguém o obriga a cursar história ou qualquer outra ciência social.

Quanto à arrogância, não fui eu que tive o desplante de vir para um blogue de outra pessoa fundamentar-me em coisas como a Wikipedia. Pelo menos, nos tempos áureos do estudo medieval, lia-se Randles, Zumthor, sabia-se quem era Pedro Margalho, o factor Expansão, a iliteracia medieval que vivia do mito e do desconhecido (sabe o que significava microcosmos e macrocosmos na Idade Média?). São questóes importantes.

Espero que não se sinta ofendido.

Anónimo disse...

Exemplo, Ptolomeu tinha um mapa bastante incompleto. Pouco se conhecia do mundo. A verdade, reconheço, é que, apesar dessa ignorância, Ptolomeu apresenta um mapa, digamos, esférico. No entanto, concepçoes cristãs eram Bíblia e não Ptolomeu ou Pitágoras. A mentalidade era vivida pela Bíblia. Se me disser que a religiâo cristã, no tempo medieval, apresentava a Terra esférica, penitencio-me agora.

Miguel Vaz disse...

Em toda esta discussão o Paulo Ferreira apenas discursou sobre o seu aparente conhecimento académico sobre História. Aposto que é o maior do seu bairro. No entanto ainda não me deu uma única prova da crença na Terra Plana na Idade Média. Vá lá, arranje lá o nome de alguém que tenha sido condenado (ou pronto, "incomodado") por acreditar na Terra Esférica. Apresente-me dados, gravuras, transcrições da Bíblia, qualquer coisa!

É que parece que o Paulo Ferreira quer fazer disto uma questão de fé!

Miguel Vaz disse...

Ah e deixe-me dizer-lhe que esta estratégia de censurar comentários é de muito baixo nível...

Anónimo disse...

Obrigado pelos dados, argumentação solida e paciência em explicar a verdade a este Paulo que se recusa a colocar-se em causa e ir às fontes entender a questão. Dou-lhe os parabéns, Miguel Vaz.
Um abraço,
Paulo Lobo